Edição LXXXIII (Terça Livre, Revista Esmeril 46, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 46
- FILOSOFIA INTEGRAL | Ortega y Gasset e as Ideias dos Náufragos (Fabio Blanco)
- A soltura (Leônidas Pellegrini)
Indiana Jones: O Aventureiro Intrépido
Indiana Jones é um personagem icônico do cinema, conhecido por sua bravura, inteligência e paixão pela arqueologia. Criado por George Lucas e trazido à vida pelo talentoso ator Harrison Ford, tornou-se um símbolo de aventura e heroísmo.
1. “Os Caçadores da Arca Perdida” (1981);
2. “O Templo da Perdição” (1984);
3. “A Última Cruzada” (1989);
4. e “O Reino da Caveira de Cristal” (2008).
Cada filme apresenta uma história envolvente e repleta de perigos, levando os espectadores a locais exóticos e cheios de mistérios ao redor do mundo.
O personagem de Indiana Jones é um professor e arqueólogo destemido, sempre em busca de artefatos históricos valiosos. Sua paixão pela história e seu conhecimento sobre antigas civilizações o tornam um especialista em descobertas arqueológicas. No entanto, suas jornadas não são apenas sobre a busca por tesouros perdidos, mas também sobre o enfrentamento de vilões perigosos que desejam explorar esses artefatos para fins malignos.
O visual distintivo de Indiana Jones também se tornou uma parte importante de sua identidade. Seu chapéu de feltro, jaqueta de couro, calças e botas desgastadas criaram uma imagem icônica que é instantaneamente reconhecida em todo o mundo. Além disso, o personagem é habilidoso no manejo de seu fiel chicote, uma arma versátil que o auxilia em suas aventuras e lhe confere uma presença imponente.
Os filmes de Indiana Jones são uma mistura perfeita de ação, humor, suspense e romance. Eles oferecem uma fuga emocionante para os espectadores, transportando-os para uma era de descobertas arqueológicas e desafios emocionantes. Indiana Jones é um herói que conquistou corações e inspirou gerações de espectadores a explorar a história e a aventura em suas próprias vidas.
Mesmo após décadas desde sua estreia, Indiana Jones continua sendo uma figura reverenciada na cultura popular, seja através de referências em outros filmes, programas de televisão ou em brinquedos e videogames. O legado de Indiana Jones permanece vivo e influente, provando que a busca pelo desconhecido e a coragem de enfrentar perigos ainda capturam a imaginação das pessoas.
Indiana Jones é um tesouro do cinema, um aventureiro intrépido que nos lembra da importância de explorar o mundo ao nosso redor, descobrir novas histórias e enfrentar desafios com coragem. Sua jornada é uma jornada e continuaria a cativar e inspirar públicos de todas as idades, por muitos anos vindouros, se não fosse a nova onda de destruição de personagens anti-comunistas e anti-nazistas.
Os “novos heróis” agora precisam ser depressivos, efeminados, medrosos (Indiana só tinha medo de cobra, mas novo filme tem medo até de insetos!) e com uma vida sem sentido.
Se o cinema outrora nos dava um horizonte de superação pela coragem e inteligência, hoje deseja que os os heróis sejam “mais humanos”, ou seja, tão medíocres que qualquer vida mesquinha tenha eco nos roteiros do cinema.
A transformação dos signos
Ao longo da história, a figura do herói tem desempenhado um papel fundamental na cultura e na sociedade. Esses personagens corajosos e altruístas são frequentemente admirados e venerados por suas ações nobres e capacidade de superar desafios. Sob o pretexto de “evolução”, as narrativas se transformaram, e uma mudança na representação do heroísmo até a perda de sua essência. O mundo atual parece não precisar de heróis, mas de passivos vassalos que tudo aceitam.
No passado, os heróis eram frequentemente retratados como figuras exemplares, dotadas de qualidades admiráveis, como coragem, honra e altruísmo. Eles se sacrificavam pelo bem maior, lutavam contra o mal e eram capazes de inspirar as massas. Esses personagens icônicos muitas vezes personificavam valores que a sociedade buscava alcançar.
O conceito de heroísmo sofreu uma transformação significativa. A cultura popular e os meios de comunicação agora tendem a retratar heróis como medíocres sem vida. Os protagonistas são frequentemente apresentados com falhas e imperfeições, sob o intuito de torná-los “mais realistas e identificáveis”. O herói já não é uma meta, mas o reflexo de uma sociedade covarde e escrava.
A noção de heroísmo tem sido questionada e, em alguns casos, até mesmo subvertida. A ideia de um herói vitorioso tem sido substituída por personagens ambíguos e anti-heróis, cujas ações e motivações não são altruístas. É a exaltação do egoísmo patético. Esses personagens destroem as convenções e exploram as áreas obscuras do comportamento, criando narrativas feministas, fracas e nada atrativas.
A perda do heroísmo é obra da cultura do cinismo e da desilusão que permeia a sociedade contemporânea. É o reino do perdedor. A desilusão com líderes, celebridades e até mesmo figuras históricas tem levado a um sentimento de descrença em relação ao conceito de heroísmo. Em vez de melhorar a sociedade com heróis ideias, busca-se aceitar os medíocres como o ápice da moralidade.
O heroísmo ainda tem seu lugar na sociedade atual. Ele não morrerá. As ações corajosas e inspiradoras permanecem. Ainda há indivíduos que se levantam em defesa dos fracos, que demonstram empatia e compaixão, e que enfrentam adversidades com bravura. É o caso do personagem de Jim Caviezel no filme que desbancou o lançamento do mais novo Indiana Jones.
Continua na parte 2.
Parte II (13/07/23 - via NSM)
A obsessão pelo fracasso
A obsessão difere de um simples interesse ou preocupação. É caracterizada pela sua intensidade, frequência e pelo impacto negativo que causa na vida da pessoa. Aqueles que sofrem de obsessões muitas vezes têm consciência de que seus pensamentos são irracionais ou excessivos, mas são incapazes de controlá-los facilmente.
E isso é exatamente o que a imprensa faz ao avaliar o filme “Sound of Freedom”. Por isso o lançamento desse filme desbancou em muito o tão esperado Indiana Jones da Disney.
“Sound of Freedom”, ao invés de usar efeitos especiais milionários, leva você a uma jornada emocional e reveladora que deixa uma marca indelével em seu coração e mente. Este poderoso e provocativo filme, lançado em 2023, é um testemunho da força do espírito humano e da determinação inabalável de trazer justiça aos sem voz.
Desde o início do filme, você fica cativado pelas impressionantes atuações e pela atenção meticulosa aos detalhes que o diretor Alejandro Monteverde traz para a tela. A narrativa é habilmente construída, mesclando drama de cortar o coração com momentos de resiliência inspiradora e esperança inabalável.
O filme gira em torno da história real de Tim Ballard (interpretado por Jim Caviezel), um ex-agente governamental que embarca em uma jornada perigosa para resgatar crianças presas nas garras do tráfico humano. A interpretação de Caviezel como Ballard é nada menos que notável, capturando a busca implacável por justiça do personagem e sua compaixão profundamente enraizada. Seu comprometimento com o papel brilha em cada cena, fazendo você realmente se identificar com o personagem e sua missão.
O elenco de apoio também oferece performances igualmente poderosas. Mira Sorvino, que interpreta o papel de Lita, uma mulher dedicada a ajudar Tim Ballard, demonstra seu talento excepcional e traz uma vulnerabilidade comovente a seu personagem. A química entre Caviezel e Sorvino é palpável, adicionando profundidade e autenticidade ao cerne emocional do filme.
“Sound of Freedom” não é apenas uma história sobre o resgate de vidas inocentes, mas também uma exploração do lado sombrio do tráfico humano. O filme expõe corajosamente as duras realidades dessa crise global, ao mesmo tempo em que lança luz sobre os esforços valentes de organizações como a Operation Underground Railroad, liderada pelo próprio Tim Ballard. O filme consegue conscientizar sobre essa questão importante sem fugir de sua natureza perturbadora.
A cinematografia e o design de produção são impecáveis, criando uma experiência imersiva que transporta você de um cenário para outro. A trilha sonora evocativa aumenta ainda mais o impacto emocional, levando você a uma montanha-russa emocional conforme a história se desenrola.
No final das contas, o que diferencia “Sound of Freedom” é sua capacidade de instilar um senso de esperança em meio às circunstâncias mais sombrias. Ele nos lembra que pessoas comuns podem fazer uma diferença extraordinária e que sempre há luz a ser encontrada nos lugares mais obscuros.
Em conclusão, “Sound of Freedom” é um filme imperdível que merece todos os elogios que recebe. Suas atuações poderosas, narrativa envolvente e compromisso inabalável em lançar luz sobre o tráfico humano tornam-no uma experiência cinematográfica inesquecível. Prepare-se para ser comovido, inspirado e, acima de tudo, chamado à ação. Os heróis voltaram. Embora os medíocres não tenham gostado nada disso.
Parte III (20/07/23 - via Locals)
Os heróis esquecidos
A Jornada do Herói é composta por uma série de etapas que o protagonista deve enfrentar durante sua trajetória. Embora as histórias possam variar em detalhes e ambientação, a estrutura subjacente permanece relativamente consistente nas principais etapas da Jornada do Herói:
1. Partida: O herói é convocado a iniciar uma jornada, muitas vezes saindo de sua zona de conforto ou recebendo um chamado para a aventura.
2. Chamado à aventura: O herói é confrontado com um desafio ou problema que o impulsiona a embarcar em sua jornada.
3. Recusa do chamado: Inicialmente, o herói pode relutar em aceitar o desafio, geralmente devido a medo, insegurança ou obrigações prévias.
4. Encontro com o mentor: O herói encontra um guia, mentor ou figura sábia que o ajuda a superar suas dúvidas e oferece orientação para a jornada.
5. Travessia do primeiro limiar: O herói deixa o mundo conhecido e entra em um novo território ou realidade, muitas vezes enfrentando desafios iniciais.
6. Testes, aliados e inimigos: O herói enfrenta uma série de testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, desenvolvendo habilidades e aprendendo lições ao longo do caminho.
7. Aproximação da caverna mais profunda: O herói se prepara para enfrentar o maior desafio, geralmente simbolizado por uma "caverna" ou lugar perigoso.
8. Crise central: O herói enfrenta seu maior teste, enfrentando seu medo mais profundo ou lutando contra um antagonista formidável.
9. Recompensa: Após superar a crise, o herói recebe uma recompensa, seja ela física, emocional ou espiritual.
10. Retorno: O herói inicia o caminho de volta, enfrentando ainda mais desafios e tomando decisões importantes.
11. Ressurreição: O herói passa por uma provação final, muitas vezes envolvendo um momento de morte e renascimento, transformando-se em uma versão aprimorada de si mesmo.
12. Retorno com o elixir: O herói retorna ao mundo comum, trazendo consigo o conhecimento, a sabedoria ou a recompensa adquirida ao longo da jornada.
A Jornada do Herói é uma estrutura poderosa que ressoa com a experiência humana e nos permite explorar temas universais. Muitas histórias, desde os mitos antigos até os filmes contemporâneos, seguem essa estrutura narrativa para criar uma jornada envolvente e significativa para o protagonista e para os espectadores.
Hoje, essa jornada é usada para povoar o imaginário popular com princípios nada nobres. Os filmes e a literatura são usados apenas para exaltar o que há de pior no homem e na sociedade. É a velha retórica revolucionária. A promessa de um mundo melhor que precisa iniciar agora, negar o passado e mudar completamente o presente.
Neste último artigo da série, é importante ressaltar como a elite globalista tem usado o cinema como ferramenta de subversão da sociedade. O que exige um profundo conhecimento sobre a jornada do herói e o poder da literatura.
Poucos anticomunistas compreendem a força da literatura, embora os comunistas saibam muito bem a profundidade dos seus efeitos. Para bem ou para mal, é a literatura que molda o futuro de uma sociedade. Se não expandirmos o imaginário popular com boas histórias, as pessoas só terão as ruins para moldar suas vidas.
Ou a literatura volta a ser o que sempre foi ou será apenas uma ferramenta revolucionária, enquanto os anticomunistas ficam participando dos joguetes políticos em assuntos absolutamente irrelevantes.
Para Ortega y Gasset, importam apenas as ideias dos náufragos, pois elas se manifestam em um tipo de situação crítica e extrema. São pensamentos de alguém que se encontra em um cenário concreto, inescapável, fatal; pensamentos que, por esse motivo, dispensam o supérfluo e agarram-se ao essencial. Em meio ao caos e às restrições que enfrenta, o náufrago organiza sua vida com base naquilo que lhe está disponível. Nesta situação, não há espaço para a pose, para a falsidade, nem afetação; não faz nenhum sentido perder-se em sutilezas vazias e especulações estéreis. Diante do caos instalado, ele é obrigado a ser sincero e absolutamente honesto consigo mesmo, sem fingir que sua situação não é trágica.
Do lado oposto às ideias dos náufragos, o filósofo identifica o abstracionismo científico, que, para manter a ciência coerente e lógica, recorta a realidade, purifica-a de sua experiência vital, afasta-a de suas incongruências práticas e evita, assim, suas contradições. Esse contraste entre a ciência, com suas estruturas artificiais, narrativas ficcionais e analogias, e a própria vida, onde as teses são contestáveis, as teorias encontram oposição e há elementos ocultos que influenciam os eventos, é o quadro pintado por Ortega para mostrar o nosso estado de alienação, de quem, ao se dar conta das contradições e imponderabilidade da vida real, refugia-se na mentalidade abstrata do laboratório, onde tudo parece controlável e harmonizável.
Foi, inclusive, essa atração por moldes que, ao nos dar uma sensação de estabilidade, nos fez criar formatos imaginativos com o objetivo de fazer tudo encaixar-se com perfeição. Desse anseio por segurança é que desenvolvemos nossos sistemas de governo, estruturas jurídicas e modelos sociais que nos permitem ter a ilusão de viver em uma situação minimamente previsível. No entanto, Ortega não nos deixa esquecer que tais construções não passam de abstrações, constituindo um verdadeiro mundo de faz-de-conta, um universo fantasmagórico de imagens fugazes.
Se vivemos como se tudo fosse inabalável e estável, ainda que instalados em terreno movediço, nos encontramos, então, como que hipnotizados, e para libertar-se dessa situação, o filósofo espanhol propõe-nos, como única saída, uma conscientização radical, uma abertura total de visão para o que está acontecendo. Para isso, ele insiste que precisamos compreender e reconhecer que o mundo que criamos é uma ilusão e, ao mesmo tempo, abraçar o caos em que vivemos, aceitando que este é o estado natural e fundamental das coisas; instiga-nos a enfrentar a vida de forma corajosa, sem nos escondermos no universo quimérico das ideias abstratas; aconselha-nos a reconhecer o caráter desafiador da existência e aceitar o fato de que nos encontramos perdidos.
Ortega, no fim das contas, exorta-nos a ser como aqueles que, pela característica extrema e vital que os acomete, encontram-se desprovidos de fingimento e engano; sugere que reconheçamos a fatalidade da nossa experiência real e exige, para que sobrevivamos nela, que consideremos aquilo que, verdadeiramente, deve ser levado em conta, que é o que realmente importa e que devemos imitar: as ideias dos náufragos.
Acorrentado e cercado por dezesseis guardas, Pedro ia sendo levado como um troféu de Herodes pelas ruas de Jerusalém. O monarca pegara gosto por sangue e, desde que soubera que perseguir os seguidores de Cristo agradava a muitos de seus súditos, resolvera recrudescer ainda mais as perseguições. A morte de Tiago de Zebedeu, um dos tais doze amigos íntimos de Jesus, fora um espetáculo particularmente jubiloso, mas agora ele tinha em mãos seu maior trunfo depois do próprio Nazareno: aquele a quem o pretenso Rei dos Judeus havia legado como seu sucessor. Aquela execução precisava ser um espetáculo ímpar.
Era ainda o tempo pascal dos judeus, então era necessário esperar. Dali a alguns dias, a cidade assistiria a um evento de grandes proporções. Por enquanto, aquele desfile com o Apóstolo acorrentado já estava de bom tamanho como um aperitivo do que estava por vir, e Herodes, a assistir a tudo de longe, deliciava-se particularmente ao ver o povo que cercava o séquito: judeus furiosos que arremessavam verduras podres no prisioneiro, e vários encapuzados – certamente cristãos – que acompanhavam com aflição o desfile.
Pedro ficou muito bem guardado na prisão. Todo o lugar estava cercado de soldados, assim como a porta e o próprio interior de sua cela, onde o Apóstolo permanecia acorrentado entre dois guardas. A notícia de sua prisão espalhou-se por toda Jerusalém, e naquele mesmo dia todo o povo de Deus rezava piedosamente por ele em cada canto da cidade e até mesmo para além de seus muros. E as preces foram ouvidas pelo Céu.
Quando era alta madrugada, os soldados todos alertas, um imenso clarão tomou o lugar e todos caíram no sono. Então, o Anjo de Pedro apareceu-lhe no interior da cela, soltou-lhe os ferrolhos e o chamou:
– Levanta-te depressa. Toma o teu cinto e as tuas sandálias. Põe sobre ti tua capa e segue-me.
O Apóstolo o acompanhou em silêncio, enquanto todos os cadeados, travas e fechaduras da prisão iam se abrindo sozinhos. Lá fora, quando já haviam atravessado a rua, o Anjo desapareceu sem dizer mais nada. Pedro ainda ficou alguns segundos como que olhando para o nada, maravilhado com o que acabara de presenciar. Tomou então consciência do milagre, e disse a si:
– Agora sei verdadeiramente que o Senhor mandou Seu Anjo e me livrou da mão de Herodes e de tudo o que esperava o povo dos judeus.
Is that poor man that hangs on princes’ favours!
There is, betwixt that smile we would aspire to,
That sweet aspect of princes, and their ruin,
More pangs and fears than war or women have;
And when he falls, he falls like Lucifer,
Never to hope again.
Triste a sorte
de quem depende do favor dos príncipes!
Entre o sorriso a que ele aspira tanto,
o aspecto prazenteiro do monarca,
e sua ruína há mais angústias e medo
do que na guerra ocorre ou nas mulheres.
E quando a queda vem, quem cai é Lúcifer,
privado da esperança.
— William Shakespeare, Henrique VIII (trad. de Carlos Alberto Nunes)
Em junho de 1532, demonstrando uma coragem de que, infelizmente, careciam os demais bispos da Inglaterra, João Fisher pregou em público contra os planos do rei de se divorciar de Catarina de Aragão. Em janeiro do ano seguinte, Henrique VIII e Ana Bolena, já então grávida, contraíram em segredo um arremedo de matrimônio. Dois meses depois, Thomas Cranmer tornou-se arcebispo da Cantuária. Uma semana mais tarde, Fisher foi preso. Parece que Cranmer e o rei o queriam fora do caminho para que não se manifestasse publicamente contra o divórcio do rei, que Cranmer recohecera em maio, ou a coroação de Ana Bolena no início de junho, grávida de seis meses. Fisher foi libertado duas semanas após a coroação, sem qualquer acusação.
Em março de 1534, Fisher, junto com Tomás More e outros, foi acusado de conluio na chamada “traição” de Elizabeth Barton, a conhecida santa Donzela de Kent que alegara ter visto o lugar reservado no inferno a Henrique VIII, caso ele se divorciasse de Catarina e se unisse a Ana Bolena. Passando por cima de toda formalidade jurídica, o Parlamento declarou Fisher e outros culpados. A punição foi o confisco de todos os bens pessoais e encarceramento ao bel-prazer do rei. Mais tarde, Fisher recebeu um indulto mediante o pagamento de uma multa de 300 libras. A pobre e infeliz “santa Dama” não teve a mesma sorte. Acusada de traição, morreu enforcada em abril junto com mais cinco companheiros, quatro deles sacerdotes. Em seguida, teve a cabeça arrancada e fincada numa estaca na Ponte de Londres, um aviso a quantos pudessem sentir-se tentados a questionar as ações do rei. Um ano depois, as cabeças de Fisher e More teriam o mesmo destino terrível. Nas palavras do historiador Richard Rex, “a execução da santa Dama e seus companheiros foi uma das muitas formas de uso judicioso do terror jurídico como meio de garantir a obediência à Reforma inglesa” [i].
No mesmo mês da prisão de More e Fisher por suposto envolvimento com a santa Dama, o Parlamento aprovou o Primeiro Ato de Sucessão, que obrigava todos os súditos a fazer um juramento de sucessão reconhecendo quaisquer filhos do casamento de Henrique e Ana como herdeiros legítimos do trono. O descumprimento da lei considerava-se um ato de traição passível de pena de morte [ii]. Fisher recusou-se a jurar e foi encarcerado na Torre de Londres no dia 26 de abril de 1534. Duas semanas antes, More também se recusara a fazer o juramento.
Da cela na prisão na Torre, More viu o abade da London Charterhouse e mais três monges passarem abaixo de sua janela a caminho do martírio, enquanto louvavam o Senhor. Como More e Fisher, eles se negaram a jurar: “Que esses benditos padres possam encarar a morte com a mesma alegria dos noivos que se dirigem ao matrimônio”, disse More à filha [iii].
Ao saberem da morte heróica daqueles santos monges, Fisher e More devem ter pensado no que os aguardava se continuassem insubmissos à nova tirania. Que teria pensado More quando a amada filha Margaret, grávida de seu neto, o visitou? Ao vê-la, como não se haveria de sentir amargurado aquele coração? “Quase lhe podemos chamar santo padroeiro da vida em família”, escreveu Christopher Hollis. “Guardamos tantas e tão vívidas imagens de sua casa, da qual vinha boa parte de sua felicidade. Felicidade, portanto, que não difere em espécie da que é oferecida a todos os homens comuns. É justamente isso o que intensifica o horror e a grandiosidade dos momentos derradeiros de sua vida. Ele caminhou em direção àquele fim a partir de uma vida como a nossa” [iv].
Ao compararmos a paixão e prisão de More com a de Fisher, podemos quase apalpar a diferença entre laicato e sacerdócio. More tem uma esposa amável e filhos dependentes sob a sua responsabilidade. Fisher, por outro lado, é celibatário; age in persona Christi, desposado com a Esposa de Cristo, a Igreja. Poder-se-ia dizer que More estava mais justificado no conflito de lealdades que teve de enfrentar.
É compreensível a tentação de uma consciência evasiva a dar o braço a torcer, se com isso puder ajudar a família. Deve, pois, ser ainda mais louvado e venerado por ter resistido à tentação. A posição do sacerdote, porém, não parece tão difícil. Tendo a Igreja por Esposa, sua vocação é dar a vida por ela. A ausência de conflito de lealdades é um dos argumentos mais fortes a favor do celibato sacerdotal. Por isso é trágico que Fisher tenha sido o único bispo inglês a desafiar o rei; é, de resto, um atestado de fraqueza e covardia por parte da hierarquia eclesiástica. Tanto no seu como no nosso tempo, Fisher é um símbolo potente do dever que têm os bispos em todas as épocas de resistir abnegados ao espírito do mundo e ao do tempo, sempre fiéis ao Corpo de Cristo e a serviço do Espírito Santo (Heilige Geist), não do espírito da época (zeitgeist).
Fisher, já velho e doente, estava tão fraco na manhã da execução, que teve de sair carregado da cela. Quanto à execução propriamente dita, temos uma testemunha ocular de suas últimas palavras pronunciadas no cadafalso. “Povo cristão”, disse Fisher à multidão reunida em Tower Hill, “vim até aqui para morrer pela fé da Igreja Católica, fundada por Cristo” [v].
Embora os momentos finais de Fisher sejam um exemplo da coragem que lhe caracterizou a vida, não houve dignidade alguma na forma como lhe trataram o corpo. Provavelmente por ordem de Henrique VIII, o cadáver foi decapitado, despido e deixado no cadafalso pelo resto do dia. À noite, foi retirado sem cerimônias e levado a um cemitério próximo, onde o descartaram ainda despido numa cova grosseira. Não houve ritos funerários. Puseram-lhe a cabeça sobre uma vara na Ponte de Londres, onde permaneceu por duas semanas. Seu aspecto corado e aparentemente incorrupto chamava bastante a atenção.
Era a vez de Tomás More enfrentar o machado do carrasco.
Três dias após o martírio de Fisher, Henrique VIII ordenou que pregadores denunciassem dos púlpitos as traições de Sir Tomás More. Como o julgamento dele por traição só começaria dali a uma semana, no dia 1.º de julho, as ordens do rei significavam — como se fosse necessário explicá-lo… — que a sentença já estava dada e só um veredicto seria admissível. São suficientemente claros os paralelos com os sistemas jurídicos de outras tiranias secularistas, como os julgamentos de fachada na União Soviética de Stálin.
No dia 6 de julho de 1535, a caminho do cadafalso, More pediu a Edmund Walsingham que o ajudasse a subir os degraus até o local da execução, e ainda gracejou, preservando o bom humor até o fim: “Senhor tenente, rezo para que me ajude a chegar a salvo lá em cima. Quanto à descida, posso me mover por conta própria” [vi]. Do cadafalso, momentos antes de ter a cabeça arrancada do corpo, More proclamou para a multidão ali reunida que sua morte era a de um “bom servidor do rei, mas primeiro de Deus”.
A cabeça foi levada até a Ponte de Londres, onde a de João Fisher, coberta de sangue, ainda era exibida. Jogaram-na no Tâmisa e puseram no lugar a cabeça de More.
Hollis descreveu More e Fisher como “os dois homens mais sábios da Inglaterra” e a morte deles como o assassinato da sabedoria e da justiça, do humor e da santidade [vii]. Com um juízo tão genérico só podemos concordar parcialmente. Talvez seja ponto discutível que More e Fisher fossem inigualáveis em sabedoria; mas é certo que a morte deles não acabou com a sabedoria, que continuou “de forma medíocre” (para citar Belloc) [viii]; nem com o humor, que ressurgiria de modo estrondoso nas comédias de Shakespeare; nem com a santidade, que sempre desafia o túmulo, já que o sangue dos mártires é a semente da Igreja.
No entanto, ela matou a justiça ou, quando menos, a enfraqueceu seriamente. A usurpação pelo rei dos direitos religiosos da Igreja e, portanto, das liberdades religiosas dos próprios súditos pôs em movimento um processo de nacionalismo secular que levaria ao surgimento de um tipo de secularismo que se transforma em fundamentalismo secular. Quando o Estado se torna presunçoso demais e esmaga a liberdade religiosa, a presunção logo se transforma em autoritarismo, que esmaga os indefesos e os fracos, o que leva ao acúmulo de corpos de incontáveis vítimas.
A palavra final sobre o legado de João Fisher e Tomás More — e o juízo definitivo (sob Deus) sobre a razão por que deveríamos considerá-los heróis — é de G. K. Chesterton, cuja personalidade prova que o martírio de More e Fisher não matou a sabedoria, o humor e a santidade. Num ensaio sobre Tomás More, Chesterton toca o núcleo do que separa a soberba de um rei da humildade de um santo:
Henrique sempre quis ser juiz em causa própria, contra as esposas, contra os amigos, contra a Cabeça de sua Igreja. Mas o elo que une More à supremacia romana pela qual morreu é este fato: que ele sempre teve a mente aberta o bastante para querer outro juiz que não ele mesmo […]. Há esta relação verdadeira entre o mártir e a doutrina pela qual foi martirizado; é que [More] morreu não apenas em defesa do Papa, mas em desforra do homem que quer se tornar Papa” [ix].
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A proibição de comparar: Brasil-Mentira III
(Publicado originalmente no Diário do Comércio, em 17 de Abril de 2009, disponível no site do professor)
Exemplos recentes da radical abolição do senso das proporções nas discussões públicas neste país, e da sua substituição por proclamações absolutistas rancorosas e pueris até à demência, aparecem em dois artigos do Observatório da Imprensa, publicação que, sublinhando o grotesco da situação, se autodefine não como um agente entre outros no jornalismo brasileiro, mas como um tribunal para o julgamento da idoneidade dos demais agentes.
Discutindo a celeuma causada pelo uso do termo “ditabranda” na Folha de S. Paulo para qualificar o regime militar brasileiro, o Sr. Alberto Dines, fundador, diretor, e guru máximo do Observatório, proclama:
“O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. Há um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável… A ‘Guerra Suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante…”
Vamos por partes. O Sr. Dines afirma que toda comparação de autoritarismos é indecente. Só vale a democracia absoluta. “O pacifismo é ncondicional ou é hipócrita. A democracia é integral ou é uma farsa.” Não vou apelar ao expediente, até covarde nas presentes circunstâncias, de mostrar que nenhuma democracia no mundo jamais foi integral. Os meros fatos não alcançam as alturas do rigorismo platônico exigido pelo Sr. Dines. Em compensação, conceitos puros são o domínio da lógica e não podem furtar-se ao dever de definir-se a si mesmos. Ora, a “democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.
Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.
Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.
Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras, mas parece difícil explicar isso a uma mente como a do Sr. Dines. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica. Uma expressão como “democracia integral” só pode ser usada por um leviano opinador que não examinou o problema por um só minuto e que se limita a manifestar desejos arbitrários como uma criancinha que esbraveja e chora quando contrariada.
A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos. Como é possível que um sujeito que ignora uma coisa tão elementar da teoria política tenha os meios de sair por aí dando lições de democracia?
Discutindo a celeuma causada pelo uso do termo “ditabranda” na Folha de S. Paulo para qualificar o regime militar brasileiro, o Sr. Alberto Dines, fundador, diretor, e guru máximo do Observatório, proclama:
“O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. Há um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável… A ‘Guerra Suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante…”
Vamos por partes. O Sr. Dines afirma que toda comparação de autoritarismos é indecente. Só vale a democracia absoluta. “O pacifismo é ncondicional ou é hipócrita. A democracia é integral ou é uma farsa.” Não vou apelar ao expediente, até covarde nas presentes circunstâncias, de mostrar que nenhuma democracia no mundo jamais foi integral. Os meros fatos não alcançam as alturas do rigorismo platônico exigido pelo Sr. Dines. Em compensação, conceitos puros são o domínio da lógica e não podem furtar-se ao dever de definir-se a si mesmos. Ora, a “democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.
Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.
Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.
Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras, mas parece difícil explicar isso a uma mente como a do Sr. Dines. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica. Uma expressão como “democracia integral” só pode ser usada por um leviano opinador que não examinou o problema por um só minuto e que se limita a manifestar desejos arbitrários como uma criancinha que esbraveja e chora quando contrariada.
A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos. Como é possível que um sujeito que ignora uma coisa tão elementar da teoria política tenha os meios de sair por aí dando lições de democracia?
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