Edição LXXXII (Terça Livre, Revista Esmeril 45, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 45
- Observação exploratória dos domesticados (Israel Simões)
- João (Leônidas Pellegrini)
Apesar da sua influência na política, o ocultismo não tem recebido a atenção merecida desde pelo menos o Iluminismo. A ideia equivocada de que a racionalidade absoluta pode abarcar todo conteúdo envolvido nas relações humanas que compõem a sociedade, além de ser um erro de interpretação causando incompreensão do verdadeiro pensamento dos principais expoentes iluministas, também provocou uma ruptura entre o imanente e o transcendente, os dois elementos cuja tensão formou a essência da nossa civilização.
Alexandre Costa
Site: www.escritoralexandrecosta.com.br
Canal: www.youtube.com/c/AlexandreCosta
(por Terça Livre - 06/07/23)
Cinco signatários foram capturados pelos britânicos como traidores e torturados até a morte. Doze tiveram suas casas saqueadas e queimadas. Dois perderam seus filhos no exército revolucionário, enquanto outro teve dois filhos capturados. Nove dos 56 lutaram e morreram devido a ferimentos ou dificuldades da guerra revolucionária.
Eles assinaram e comprometeram suas vidas, suas fortunas e sua honra sagrada.
Que tipo de homens eram eles? Vinte e quatro eram advogados e juristas. Onze eram comerciantes, nove eram agricultores e grandes proprietários de plantações, homens abastados e bem-educados. Mas eles assinaram a Declaração de Independência sabendo muito bem que a pena seria a morte se fossem capturados.
Carter Braxton, da Virgínia, um rico fazendeiro e comerciante, viu seus navios serem varridos dos mares pela Marinha Britânica. Ele vendeu sua casa e propriedades para pagar suas dívidas e morreu em trapos.
Thomas McKeam foi tão perseguido pelos britânicos que foi forçado a mudar constantemente sua família de lugar. Ele serviu no Congresso sem receber salário, e sua família era mantida escondida. Seus bens foram confiscados e a pobreza foi sua recompensa.
Vândalos ou soldados, ou ambos, saquearam as propriedades de Ellery, Clymer, Hall, Walton, Gwinnett, Heyward, Ruttledge e Middleton.
Na batalha de Yorktown, Thomas Nelson Jr. observou que o General Cornwallis havia ocupado a casa de Nelson como quartel-general. O proprietário silenciosamente instigou o General George Washington a abrir fogo. A casa foi destruída, e Nelson faleceu falido.
Francis Lewis teve sua casa e propriedades destruídas. O inimigo aprisionou sua esposa, e ela morreu alguns meses depois.
John Hart foi expulso do lado de sua esposa enquanto ela estava morrendo. Seus 13 filhos fugiram para salvar suas vidas. Seus campos e seu moinho foram devastados. Por mais de um ano, ele viveu em florestas e cavernas, retornando para casa e encontrando sua esposa morta e seus filhos desaparecidos. Poucas semanas depois, ele morreu de exaustão e coração partido. Norris e Livingston sofreram destinos semelhantes.
Essas foram as histórias e sacrifícios da Revolução Americana. Eles não eram arruaceiros descontrolados. Eram homens de posses e educação, de fala mansa. Eles tinham segurança, mas valorizavam a liberdade acima de tudo. Mantendo-se altos, retos e firmes, eles prometeram: 'Pelo apoio a esta declaração, com firme confiança na proteção da providência divina, mutuamente nos comprometemos, nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra.
O dia começou com as observações mais vulgares e inspiradoras. Depois de um treino de boxe e duas tapiocas com ovos mexidos, fui até o campus universitário da minha cidade realizar uma prova de proficiência em inglês. Há três anos não pisava em uma sala de aula, o que me despertou memórias, sensações e esta curiosidade sobre gente que marca a minha passagem neste mundo.
Logo ao entrar na sala me deparei com o fiscal de prova, um moço bastante magro, de pele desbotada, movimentos delicados e voz nasalada. Era gentil, me recebendo com um sorriso e indicando onde eu deveria me assentar. Na maior parte do tempo olhava para baixo, exceto quando falava, buscando um ponto fixo no fundo da sala onde pudesse se manter estável. Enquanto passava as orientações à classe, com muita calma e constância, notei que seu braço esquerdo perpassava suas costas, a mão esquerda em busca do braço direito, em claro sinal de retração, como se quisesse compensar o gesto dominador de se colocar à frente, atento e vigilante sobre a turma, com o recolhimento daqueles membros que, como a boca, nos projetam.
Recuar braços e mãos nos leva a retroceder com todo o corpo, a ceder, consentir, silenciar. Por trás dos óculos de armação grossa e do corte de cabelo com alguma pretensão de estilo, havia naquele rapaz medo. (E não caiamos no erro de pensar que a simples compleição física em desvantagem seja a causa de sua fraqueza. Especialmente nas periferias, os moleques franzinos apresentam uma audácia de movimentos, um senso de poder e dominação territorial dignos de um lutador profissional. Porque crescem correndo riscos, adquirem logo um certo eixo corporal, que denota força e capacidade de defesa).
Também notei algumas pessoas que ocupavam as carteiras. Havia um rapaz bastante forte, mas de aparência não tão masculina assim: é que ele usava uma blusa pólo pelo menos um número abaixo do seu tamanho por dentro de uma calça de sarja bege dobrada na canela. Também portava um tênis com solado de enorme espessura, como quem quer ficar mais alto. Enquanto aguardava a prova começar, observei que ele apoiava a mão esquerda sobre o seu próprio bíceps direito, eventualmente contraindo o músculo.
Narcisista? Provavelmente não. Apenas um ex-magro deslumbrado com os efeitos transformadores da testosterona.
Um tanto atrasado e afoito, outro rapaz entrou pela sala andando rápido, fazendo barulho, sacodindo um pacotinho de biscoitos salgados (apesar da proibição de levar alimentos para a prova). Tirou a blusa de frio, ajeitou a camisa social sem passar e começou a comer. Não pude deixar de notar, de canto de olho, que ele meteu a mão na embalagem, catou metade dos biscoitos e enfiou todos na boca. Claramente não parecia estar no estado de espírito que a prova requeria.
Uma moça de franja curtinha bocejou tão alto que tive que girar o pescoço para vê-la melhor. Ela estava tão pálida que parecia ter acordado de uma longa hibernação. Os cabelos cacheados com pontas amarelas (não loiras, amarelas) eram ressecados e bagunçados, mas a calça jeans parecia de marca, bem estruturada. Também usava uma dessas sandálias de plástico que estão na moda, enormes e tratoradas. Definitivamente não era uma menina pobre, mas gostava de parecer como tal.
Outras moças estavam sentadas mais atrás, mas como eu queria realizar um pequeno exercício de respiração para me concentrar na prova, não pude exercer plenamente a minha exploração bisbilhoteira. Vi que duas ou três estavam bem acima do peso ideal, com dificuldade para se ajustar à pequena cadeira. Havia também uma moça jovem com jeito de certinha, talvez evangélica, de olhos estatelados, parecendo muito engajada em realizar a prova com o máximo esmero. Por fim reparei em uma senhora com ar professoral, que inclusive respondeu uma pergunta minha dirigida objetivamente ao fiscal. Ela usava uma calça preta e sapatos fechados, aparentemente pouco confortáveis para uma prova com três horas de duração. Talvez fosse professora mesmo e experimentava algum estranhamento naquela posição telespectadora.
E então começou a prova.
***
Logo de cara me deparo com uma matéria do NY Times sobre os incêndios na Austrália, desses que ocorrem todos os anos por uma combinação de altas temperaturas, fortes ventos e clima seco. Pelo título do artigo (Enquanto a Austrália queima, seus líderes trocam insultos, traduzido), o leitor poderia pensar que o jornalista estava cobrando dos governos locais medidas de gestão da segurança, da logística e de contenção das chamas durante o verão de 2020, mas não: o texto era uma crítica a tudo que se oponha à agenda progressista, atacando políticos conservadores, empresários, até mesmo os costumes do povo australiano.
Intercalando profecias apocalípticas com fotos escuras e acinzentadas das chamas se alastrando pelas áreas rurais, Damian Cave cria uma narrativa colegial simplória, digna de revistinha infantil, para convencer o leitor de que os morcegos e coalas importam mais que os mineradores, siderúrgicos, metalurgistas e milhares de outros trabalhadores da indústria australiana.
Por que justamente este texto foi escolhido para uma prova de proficiência em inglês? Não haveria algo mais científico, minimamente isento, que suscitasse menos emoções, facilitando o desempenho técnico dos que intentavam apenas medir sua fluência no idioma?
Obviamente a academia não perde uma oportunidade de doutrinar o seu público, vendida que está aos interesses corporativistas e sindicais, cujo financiamento vem de gente que lucra com o discurso anti-sistema. Para espalhar esta mensagem digna de Xou da Xuxa, “vamos salvar o planeta”, nada como um corpo de estudantes universitários apáticos, inertes, enfermos, ou pelo menos imaturos, sem identidade, prontos para se entregar a qualquer seitazinha pseudointelectual que sirva como abrigo afetivo e referência moral.
Os estudantes universitários brasileiros se rendem à superficialidade fofa dos discursos públicos porque ela espelha a sua própria estrutura pessoal infantilizada.
E na fraqueza de seus corpos, aparências e consciências é que se estabelece o reino do relativismo e da amoralidade.
Aqueles três últimos meses dentro do útero foram especialmente felizes para o menino. O pai, ainda que mudo, estava sempre por perto, uma presença amorosa que lhe dava segurança. Também lhe agradava a companhia da jovem tia Maria, querida e cuja voz sempre soava para ele como a mais linda das melodias. E havia, claro, o primo, seis meses mais novo, lá no ventre da tia. O primo querido, que o fazia pular de alegria e volta e meia dar sustos na mãe; o primo que ele podia ver dali de dentro e que era pura luz; o primo que lhe concedera a maior das graças quando se conheceram; o primo que era o próprio Deus. Não havia como desejar melhores companhias. Foram meses abençoados.
Enfim, chegou o seu dia. Um parto tranquilo, apesar da idade avançada de sua mãe. Em torno, criados, vizinhos, amigos, conhecidos, a tia e seu pai, ainda mudo. Muitos felicitações, muita alegria, muitos sorrisos. Quando o puseram no colo da tia, ele pôde sentir bem perto seu coração, e também o do primo amado. Aquilo o enlevava, e ele sorria como a criança mais feliz do mundo. E também sentiu um conforto todo especial quando o puseram no colo do tio José, quase tão calado como seu pai, e cujo coração inspirava uma profunda piedade. Ficou triste quando aqueles tios e o primo foram embora, mas cada um tinha seu caminho a seguir, e o deles, naquele momento, era de volta para casa.
Oito dias depois foi sua circuncisão, e aconteceu de quererem dar a ele o nome de seu pai, Zacarias, que continuava sem conseguir falar. Mas sua mãe interveio, enérgica:
– De modo algum. Ele será chamado João!
Perguntaram então ao pai do menino, por gestos, como ele queria que se chamasse. Ele, pedindo uma tabuinha, escreveu assim: “O seu nome é João”. Todos acederam, admirados. E ainda mais espantados ficaram porque, naquele momento, a língua de Zacarias se desprendeu e, depois de meses, ele pôde falar novamente. Inspirado pelo Espírito Santo, o velho pai tomou João no colo, bendisse a Deus e profetizou o futuro do filho:
– Tu, menino, serás chamado filho do Altíssimo, porque irás diante da face do Senhor, a preparar os Seus caminhos; para dar ao Seu povo o conhecimento da Salvação, pela remissão dos seus pecados, graças à terna misericórdia do nosso Deus, que nos trará do alto a vista do sol nascente, para alumiar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte; para dirigir os nosso pés no caminho a paz.
Em 1572, calvinistas holandeses, contrários ao domínio hispano-católico sobre os “Países Baixos dos Habsburgos” (como então eram chamados), tomaram o controle da cidade de Gorcum. Onze membros do convento franciscano local, três padres diocesanos (incluindo o pároco local) e um cônego agostiniano foram capturados pelos soldados; quando um membro da comunidade dominicana local veio para lhes ministrar os sacramentos, também ele foi capturado e encarcerado com os outros. Pouco tempo depois, dois premonstratenses e outro padre secular foram adicionados ao grupo, chegando a um número total de dezenove homens.
No decorrer de vários dias, começando com 26 de junho, os soldados os submeteram a terríveis crueldades, em parte por ódio à religião católica, em parte na esperança de tomar posse dos tesouros da igreja, que eles acreditavam ter sido escondidos pelos religiosos. Na manhã de 7 de julho, eles foram transferidos para outra cidade, chamada Brielle, e na presença do líder calvinista, o Barão de La Marck, e de vários ministros calvinistas, receberam a notícia de que seriam libertados se abjurassem a doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento — coisa que eles se recusaram a fazer.
O barão então recebeu uma carta do líder da rebelião, o Príncipe de Orange (conhecido como Guilherme, o Taciturno), ordenando que todos fossem libertados. Ele concordou em fazê-lo, desde que os prisioneiros repudiassem publicamente a primazia do Papa — o que eles também se recusaram a fazer. Na manhã de 9 de julho, eles foram levados para um mosteiro abandonado no campo, perto de Brielle, e enforcados nas vigas de uma das dependências, com as cordas amarrados em suas bocas. Nem mesmo essa morte incrivelmente lenta e dolorosa satisfez a barbárie dos calvinistas, que também mutilaram os corpos — alguns deles enquanto estavam ainda vivos.
Um dos franciscanos, um dinamarquês chamado Vileado, tinha 90 anos; outros três estavam na casa dos setenta. Quando os corpos foram retirados, seus restos mortais foram deixados em uma vala e só foram recuperados em 1616, durante uma trégua na Guerra dos Oitenta Anos, entre a Espanha e os Países Baixos. Agora, eles repousam na igreja franciscana de São Nicolau, em Bruxelas. Há também uma igreja de peregrinação dedicada a eles no local de seu martírio, em Brielle.
Talvez a doutrina mais escandalosa, entre as muitas de Calvino, seja a da dupla predestinação, [ou seja,] a crença de que somos todos predestinados ou à salvação eterna ou à condenação. (Calvino também ensinava que, talvez, salvar-se-iam [só] cem almas de toda a raça humana, embora ele ainda fosse humano o suficiente para ao menos reconhecer que essa era uma “conclusão terrível”.) Inevitavelmente, isso leva as pessoas a procurar, em sua vida, sinais de que estão entre os eleitos de Deus; daí a ideia de que a prosperidade material nesta vida seja um sinal de predestinação na próxima — doutrina que, com igual inevitabilidade, agora se degenerou em níveis verdadeiramente paródicos [i]. Mas, como viram de imediato os apologistas católicos, essa doutrina é pastoralmente desastrosa, pois encoraja não só os pecadores, mas também aqueles que deixaram o pecado, a verem suas faltas passadas ou presentes como um sinal de que estão entre os réprobos e, assim, desesperarem de sua própria emenda e salvação. (Um amigo meu, que cresceu no calvinismo e agora é sacerdote católico, exprimiu[-me] assim, certa vez, a atitude que advém [desta ideia]: “Se eu vou para o Inferno de qualquer maneira, posso muito bem aproveitar o voo com champanhe”.)
Contra isso, podemos aduzir, como testemunhas (primeiro significado da palavra grega “mártir”) particularmente notáveis, as vidas e mortes de dois dos Mártires de Gorcum: elas demonstram que a porta da conversão não está fechada para ninguém nesta vida, nem mesmo para o mais empedernido dos pecadores.
Um dos dois premonstratenses, Tiago Lacops, havia renunciado anteriormente tanto a seus votos quanto à fé católica, depois que seus superiores lhe repreenderam a vida irregular e declararam-no contumaz [i.e., reincidente no desprezo para com as leis da Igreja]. Tendo se reconciliado com a Igreja, ele e Santo Adriano de Hilvarenbeek foram capturados em Gorcum ao abrir a porta de seu presbitério para um homem supostamente desejoso de receber os últimos sacramentos. Embora a cidade estivesse ocupada e eles soubessem que aquilo podia ser uma armadilha (como de fato era), eles preferiram não correr o risco de permitir que alguém morresse sem a assistência de um sacerdote; por isso, foram conduzidos à tortura e à morte. É claro: que um filho de São Norberto morresse pela doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento, é especialmente apropriado — já que o santo mesmo fôra um clérigo negligente quando jovem (embora não tanto quanto esse seu filho) [e depois se converteu em um grande propagador do culto eucarístico].
Ainda mais interessante é o caso de um dos padres diocesanos, Santo André Wouters, bem conhecido como mulherengo e pai de mais de um filho ilegítimo: mesmo em desgraça, ele se associou livremente aos outros. Os soldados calvinistas o ridicularizaram devido aos pecados pelos quais ele era tão notório e seguramente esperavam, segundo as conclusões lógicas de sua doutrina, que um padre de má vida apostataria e salvaria a própria pele. [Mas] ele não fez isso, e suas últimas palavras registradas foram: “Fornicador eu sempre fui, mas herege nunca. Vou para a morte junto com os outros”. Como afirma sabiamente o texto sobre eles, escrito na “Vida dos Santos” de Alban Butler [Butler’s Lives of the Saints]:
Eis uma significativa advertência contra [o ato de] julgar o caráter do nosso próximo, ou [de] pretensamente ler o seu coração: enquanto um sacerdote de vida irrepreensível desertou num momento de fraqueza, dois que haviam sido causa de escândalo entregaram sem hesitar as suas vidas.
Não obstante o desprezo dos calvinistas pelos votos religiosos e pelo celibato sacerdotal, eles não duvidavam, é claro, de que fornicação fosse pecado; por isso, [certamente] viram, na vida pecaminosa de André Wouters, um claro sinal de sua predestinação eterna ao Inferno. Para nós, católicos, o martírio e canonização dele constituem um lembrete: sempre que nos depararmos com uma vida pecaminosa, inclusive a nossa própria, não devemos ver nada mais que um chamado à oração pela conversão — conversão esta que pode acontecer até mesmo nos últimos instantes de [nossa] vida.
A seguir, confira o elogio do atual Martirológio a esses mártires, juntamente com seus nomes completos:
Em Brielle, junto ao rio Mosa, na Holanda, a paixão dos santos mártires Nicolau Pieck, presbítero, e dez companheiros* da Ordem dos Frades Menores e oito do clero diocesano ou regular, que, por terem defendido a presença real de Cristo na Eucaristia e a autoridade da Igreja Romana, foram submetidos pelos calvinistas a numerosas torturas e humilhações e, finalmente, suspensos na forca, consumaram o seu combate.
[*] São estes os seus nomes: Jerônimo de Weert, Teodorico van der Eem, Nicásio van Heeze, Vileado da Dinamarca, Godefredo de Melveren Coart, Antônio de Hoornaert, Antônio de Werta e Francisco de Roye, presbíteros da Ordem dos Frades Menores; e ainda Pedro de Assche van der Slagmolen e Cornélio de Wijck Bij Duursteed, religiosos da mesma Ordem; João Lenaerts, cônego regular de Santo Agostinho; João de Colônia, presbítero da Ordem dos Pregadores; Adriano de Hilvarenbeek, Tiago Lacops, presbíteros da Ordem Premonstratense; Leonardo Vechel, Nicolau Poppel, Godefredo van Duynen e André Wouters, presbíteros.
__________________________
Inversão retórica e realidade invertida: Brasil-Mentira II
(Publicado originalmente no Diário do Comércio, em 15 de Abril de 2009, disponível no site do professor)
Enxergar nos criminosos a sombra da sociedade, portanto a projeção ampliada dos males latentes no próprio coração da maioria honesta, é tendência bem antiga da cultura ocidental. Quando François Villon, o poeta-assassino, vislumbra o seu próprio corpo de enforcado balançando no ar, não como testemunho de seus crimes, mas como um apelo à bondade das gerações futuras, sem lembrar-se de dizer uma palavra sequer em favor de suas vítimas, ele inaugura uma das inversões retóricas mais poderosas da modernidade: a relação de caridade estabelece-se agora como um vínculo direto entre a comunidade e o criminoso, fazendo-se abstração das vítimas. Estas não têm direito à caridade, nem do seu algoz, nem do futuro. Passando por cima dos assassinados, a Deusa História absolve os assassinos.
As Confissões de Jean-Jacques Rousseau, um dos livros mais populares de todos os tempos, consolidam a inversão, quando, da revelação de seus defeitos e pecados, o autor, em vez de inferir que não presta, tira a conclusão de que ninguém é melhor que ele. Pais e mães que sacrificaram vida e saúde por seus filhos são rebaixados ante a vaidade do ambicioso carreirista que preferiu remeter os seus cinco a um orfanato, para ter tempo de brilhar nos salões e ser paparicado por todos aqueles que depois ele acusaria de oprimi-lo. Rousseau gaba-se mesmo de ser o melhor homem da Europa, o mais humano, o mais bondoso, o mais sensível, incompreendido pela multidão de filisteus.
A literatura dos séculos XIX e XX esforçou-se tanto para humanizar a imagem do criminoso, que acabou por desumanizar o restante da espécie humana. A partir dos anos 60 do século XX, a superioridade ontológica dos criminosos sobre a sociedade normal havia se consolidado tão profundamente na imaginação das classes falantes, que foi possível fazer, daquilo que nascera como um mito literário, uma estratégia de ação política e o princípio de uma reforma cultural e moral de dimensões universais. A geração de universitários que hoje ocupa todas as posições de poder e influência no Brasil foi inteiramente formada nessa mentalidade, e já não pode distinguir entre uma figura de linguagem e a realidade da vida social. O que essa figura de linguagem expressa não é de todo irreal. Cada delinqüente, por definição, dá expressão física e manifesta às tendências malignas latentes na alma dos seres humanos em geral, inclusive os melhores deles. Nenhuma vítima de homicídio pode proclamar que o desejo de matar está totalmente ausente no seu coração. A diferença entre ela e o assassino não é de natureza, mas de proporção. É por isso que o assassino pode simbolizar o pecado oculto na alma do assassinado. Basta, porém, uma pequena ênfase retórica para que a diferença de proporções desapareça sob uma impressão contundente de que todos são culpados pelo homicídio, exceto o homicida. As figuras de linguagem servem precisamente para realçar certos aspectos da realidade, que o senso de proporcionalidade da experiência comum encobre. Mas quando o poder sugestivo de uma figura de linguagem começa, retroativamente, a encobrir a experiência comum, ela deixa de ser uma figura de linguagem, passa a ser uma afirmação literal, uma fé e até um dogma. Já não é nem mesmo uma ideologia política. É um valor pessoal, uma crença espontânea: não é que o sujeito “ache” que os criminosos são superiores, ele age como se eles o fossem, porque jamais lhe ocorreu que pudessem ser outra coisa. A ideologia, aí, incorporou-se à psique e já não é reconhecida como tal: é um sentimento pessoal e mesmo um reflexo incoercível. Quando na era Brizola as damas da sociedade começaram a achar lindo namorar com traficantes do morro, já não se podia dizer que faziam isso por ideologia: a ideologia se transformara em compulsão emotiva. Foi isso o que aconteceu na linguagem das classes falantes do Brasil nos últimos quarenta anos. Elas já não acreditam somente que o assassino “pode”, imaginariamente, refletir o mal latente no coração do inocente, mas enxergam realmente, literalmente, os inocentes como culpados. Fazer justiça, no seu entender, é libertar da prisão todos os assassinos, estupradores, seqüestradores e narcotraficantes, colocando em seu lugar aqueles que até ontem personificavam a sociedade “normal”. A busca de pretextos para justificar essa inversão consolida, por sua vez, uma lógica jurídica invertida. Ao mais mínimo sinal de que um cidadão conceituado não tenha uma conduta irrepreensível, santa, impecável, isto surge aos olhos desse novo modelo de justiceiro como a prova cabal de que tinha razão: os bons, se não são perfeitos, são maus; os maus, sendo um reflexo da maldade deles, são bons no fundo. Daí a inversão da pena: para os crimes de morte, mesmo em série, mesmo cometidos por motivos torpes, brandura e leniência. Para os delitos financeiros e administrativos das pessoas famosas, vingança implacável – exceto, é claro, se essas pessoas famosas forem por sua vez adeptas da nova justiça: aí seus crimes se tornam sacrifícios meritórios pelo bem da sociedade futura.
Até um certo ponto, a inversão retórica é tolerável. Ela serve como um atenuante relativista da confiança que toda sociedade tem na sua própria bondade. Quando, porém, o atenuante da norma se transforma ele próprio em norma, é evidente que todo o senso das proporções se perdeu por completo, sendo substituído pela proclamação despótica da inocência dos culpados e da culpabilidade de todos os demais (exceto, naturalmente, o próprio autor da inversão e seus similares). Que isso se faça em nome da “justiça” é claramente uma ironia macabra, de vez que a justiça humana, não podendo jamais alcançar a perfeição absoluta do seu modelo divino (real ou imaginário), consiste precisamente, e exclusivamente, no senso das proporções. Suum cuique tribuere, “atribuir a cada um o que lhe cabe”, é a definição mesma da justiça. Daí deriva o princípio essencial do Direito moderno, que é a proporcionalidade dos delitos e das penas. Um código penal – qualquer código penal – não é outra coisa se não um sistema de proporcionalidades. Quando esta noção desaparece do horizonte de consciência não só dos fazedores de justiça, mas também daqueles que lhes dão suporte cultural na mídia e no sistema educacional, toda possibilidade de discussão racional da gravidade relativa dos crimes, e portanto das penas que lhes competem, está eliminada do panorama social. Em lugar dela, entra a vontade arbitrária dos novos agentes, inteiramente fundada no ódio e na inveja, disposta a aplicar, conforme suas conveniências grupais, a uns os rigores de um purismo inflexível, a outros os mais confortáveis atenuantes do relativismo cultural.
Enxergar nos criminosos a sombra da sociedade, portanto a projeção ampliada dos males latentes no próprio coração da maioria honesta, é tendência bem antiga da cultura ocidental. Quando François Villon, o poeta-assassino, vislumbra o seu próprio corpo de enforcado balançando no ar, não como testemunho de seus crimes, mas como um apelo à bondade das gerações futuras, sem lembrar-se de dizer uma palavra sequer em favor de suas vítimas, ele inaugura uma das inversões retóricas mais poderosas da modernidade: a relação de caridade estabelece-se agora como um vínculo direto entre a comunidade e o criminoso, fazendo-se abstração das vítimas. Estas não têm direito à caridade, nem do seu algoz, nem do futuro. Passando por cima dos assassinados, a Deusa História absolve os assassinos.
As Confissões de Jean-Jacques Rousseau, um dos livros mais populares de todos os tempos, consolidam a inversão, quando, da revelação de seus defeitos e pecados, o autor, em vez de inferir que não presta, tira a conclusão de que ninguém é melhor que ele. Pais e mães que sacrificaram vida e saúde por seus filhos são rebaixados ante a vaidade do ambicioso carreirista que preferiu remeter os seus cinco a um orfanato, para ter tempo de brilhar nos salões e ser paparicado por todos aqueles que depois ele acusaria de oprimi-lo. Rousseau gaba-se mesmo de ser o melhor homem da Europa, o mais humano, o mais bondoso, o mais sensível, incompreendido pela multidão de filisteus.
A literatura dos séculos XIX e XX esforçou-se tanto para humanizar a imagem do criminoso, que acabou por desumanizar o restante da espécie humana. A partir dos anos 60 do século XX, a superioridade ontológica dos criminosos sobre a sociedade normal havia se consolidado tão profundamente na imaginação das classes falantes, que foi possível fazer, daquilo que nascera como um mito literário, uma estratégia de ação política e o princípio de uma reforma cultural e moral de dimensões universais. A geração de universitários que hoje ocupa todas as posições de poder e influência no Brasil foi inteiramente formada nessa mentalidade, e já não pode distinguir entre uma figura de linguagem e a realidade da vida social. O que essa figura de linguagem expressa não é de todo irreal. Cada delinqüente, por definição, dá expressão física e manifesta às tendências malignas latentes na alma dos seres humanos em geral, inclusive os melhores deles. Nenhuma vítima de homicídio pode proclamar que o desejo de matar está totalmente ausente no seu coração. A diferença entre ela e o assassino não é de natureza, mas de proporção. É por isso que o assassino pode simbolizar o pecado oculto na alma do assassinado. Basta, porém, uma pequena ênfase retórica para que a diferença de proporções desapareça sob uma impressão contundente de que todos são culpados pelo homicídio, exceto o homicida. As figuras de linguagem servem precisamente para realçar certos aspectos da realidade, que o senso de proporcionalidade da experiência comum encobre. Mas quando o poder sugestivo de uma figura de linguagem começa, retroativamente, a encobrir a experiência comum, ela deixa de ser uma figura de linguagem, passa a ser uma afirmação literal, uma fé e até um dogma. Já não é nem mesmo uma ideologia política. É um valor pessoal, uma crença espontânea: não é que o sujeito “ache” que os criminosos são superiores, ele age como se eles o fossem, porque jamais lhe ocorreu que pudessem ser outra coisa. A ideologia, aí, incorporou-se à psique e já não é reconhecida como tal: é um sentimento pessoal e mesmo um reflexo incoercível. Quando na era Brizola as damas da sociedade começaram a achar lindo namorar com traficantes do morro, já não se podia dizer que faziam isso por ideologia: a ideologia se transformara em compulsão emotiva. Foi isso o que aconteceu na linguagem das classes falantes do Brasil nos últimos quarenta anos. Elas já não acreditam somente que o assassino “pode”, imaginariamente, refletir o mal latente no coração do inocente, mas enxergam realmente, literalmente, os inocentes como culpados. Fazer justiça, no seu entender, é libertar da prisão todos os assassinos, estupradores, seqüestradores e narcotraficantes, colocando em seu lugar aqueles que até ontem personificavam a sociedade “normal”. A busca de pretextos para justificar essa inversão consolida, por sua vez, uma lógica jurídica invertida. Ao mais mínimo sinal de que um cidadão conceituado não tenha uma conduta irrepreensível, santa, impecável, isto surge aos olhos desse novo modelo de justiceiro como a prova cabal de que tinha razão: os bons, se não são perfeitos, são maus; os maus, sendo um reflexo da maldade deles, são bons no fundo. Daí a inversão da pena: para os crimes de morte, mesmo em série, mesmo cometidos por motivos torpes, brandura e leniência. Para os delitos financeiros e administrativos das pessoas famosas, vingança implacável – exceto, é claro, se essas pessoas famosas forem por sua vez adeptas da nova justiça: aí seus crimes se tornam sacrifícios meritórios pelo bem da sociedade futura.
Até um certo ponto, a inversão retórica é tolerável. Ela serve como um atenuante relativista da confiança que toda sociedade tem na sua própria bondade. Quando, porém, o atenuante da norma se transforma ele próprio em norma, é evidente que todo o senso das proporções se perdeu por completo, sendo substituído pela proclamação despótica da inocência dos culpados e da culpabilidade de todos os demais (exceto, naturalmente, o próprio autor da inversão e seus similares). Que isso se faça em nome da “justiça” é claramente uma ironia macabra, de vez que a justiça humana, não podendo jamais alcançar a perfeição absoluta do seu modelo divino (real ou imaginário), consiste precisamente, e exclusivamente, no senso das proporções. Suum cuique tribuere, “atribuir a cada um o que lhe cabe”, é a definição mesma da justiça. Daí deriva o princípio essencial do Direito moderno, que é a proporcionalidade dos delitos e das penas. Um código penal – qualquer código penal – não é outra coisa se não um sistema de proporcionalidades. Quando esta noção desaparece do horizonte de consciência não só dos fazedores de justiça, mas também daqueles que lhes dão suporte cultural na mídia e no sistema educacional, toda possibilidade de discussão racional da gravidade relativa dos crimes, e portanto das penas que lhes competem, está eliminada do panorama social. Em lugar dela, entra a vontade arbitrária dos novos agentes, inteiramente fundada no ódio e na inveja, disposta a aplicar, conforme suas conveniências grupais, a uns os rigores de um purismo inflexível, a outros os mais confortáveis atenuantes do relativismo cultural.
Comprar |
Comentários
Postar um comentário