Edição L (Terça Livre, Revista Esmeril 30 e mais)
(matérias de edições antigas da revista que ainda são atuais)
A edição anterior da Revista Terça Livre mostrou como funciona a bonificação por
volume, o BV, instrumento desenvolvido pela Rede Globo para criar e manter o
seu domínio no mercado de telecomunicação brasileiro. Só que esse mecanismo de propina legalizada funciona perfeitamente
para aqueles com interesse em alavancar esquemas de corrupção.
O número de agências de publicidade envolvidas
nos maiores escândalos de corrupção dos
últimos anos é algo verdadeiramente espantoso. Do Mensalão à Lava Jato, os publicitários exerceram papéis fundamentais em todos as
tramoias.
Tudo começou com a CPI dos Correios, em
maio de 2005. Em um vídeo gravado na estatal naquele ano, o então funcionário
do Correios Maurício Marinho aparecia negociando propinas com empresários para uma licitação. Marinho dizia estar agindo
com o respaldo do então deputado federal Roberto Jefferson. Mais tarde, em
entrevista à Folha de S. Paulo, Jefferson revelou um esquema de pagamentos mensais
feitos pelo governo a políticos da base aliada, o que
deu início ao escândalo do mensalão.
Em agosto de 2005, o publicitário Duda
Mendonça, em depoimento à CPI do Mensalão, revelou que
com a intermediação do publicitário Marcos
Valério havia recebido R$ 10,5 milhões para a campanha
de Lula em 2002. E assim, chega-se ao primeiro grande
nome dos esquemas de corrupção que eram alimentados
com dinheiro de publicidade. Segundo os
depoimentos de Roberto Jefferson, ele entregaria malas de
dinheiro aos deputados para que esses votassem a favor
do governo. Marcos Valério teve uma evolução de
patrimônio espantosa. De 1997 até 2004, os seus bens saltaram de R$ 230 mil para R$ 14 milhões, um aumento
de 60 vezes em sete anos.
Os registros das acusações mostram que a
saga de Marcos Valério começou ainda em 1998. Ele
conseguiu desviar dinheiro das empresas Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e da
Companhia Mineradora de Minas Gerais (Comig),
destinados a patrocínio de eventos esportivos. O
próprio governador de Minas Gerais da época, Eduardo Azeredo,
teria pedido o repasse de R$ 1,5 milhão dessas
empresas para Valério, para assim aumentar o caixa para
a campanha de sua reeleição.
Mas foi na era Lula que se concentraram as
maiores somas de dinheiro. Uma das operações
remete ao recebimento de 60% dos recursos do Banco
do Brasil que provinham do Fundo Visanet de 2001 a 2005.
Naquele período, os valores repassados às empresas
de Valério chegam a R$ 92 milhões, segundo os
relatórios da polícia federal. O operador do chamado
propinoduto possuía duas agências de publicidade: a
SMP&B e a DNA Propaganda.
No ano de 2003, o então presidente da câmara dos deputados, João Paulo Cunha (PT-SP),
recebeu uma propina de R$ 50 mil para favorecer a
empresa SMP&B de Marcos Valério em uma licitação de
propaganda da Câmara. Duas semanas depois do pagamento
dessa propina, a agência de publicidade
SMP&B venceu a licitação do governo, mesmo já estando
eliminada do processo por ter sido considerada
tecnicamente incapaz. De fato, a agência de Marcos Valério não
oferecia meios técnicos para honrar o contrato, e acabou subcontratando 99,9% do serviço.
A DNA Propaganda possuía um contrato com o
Banco do Brasil. Em um modus
operandi similar ao caso anterior, Marcos Valério pagou R$ 326 mil para o
então diretor de marketing do Banco do Brasil, Henrique
Pizzolato, autorizar um repasse de R$ 70,3 milhões de
reais do BB por intermédio do fundo Visanet. O valor
foi pago como um adiantamento, já que não havia, até
aquele momento, nenhuma comprovação de serviço
prestado pela agência.
Aqui, é importante constar que laudos posteriores constatam que o dinheiro do BB realmente
foi utilizado pagar serviços de mídia e propaganda. Isso não constitui nenhuma surpresa, porque, somente nessa
ação, o núcleo publicitário do mensalão teria ganhado
algo em torno de R$ 2,9 milhões a título de bônus
de volume. Esse é o grande segredo e a genialidade
maligna desses esquemas. E os anais do Supremo Tribunal
Federal (STF) mostram não haver, aparentemente, crime
nenhum.
Cabe, ainda, registrar que a DNA
Propaganda foi a agência que mais cresceu no país entre os
anos de 2002 e 2004, sendo que somente no último ano
cresceu espantosos 203%. Dentre os clientes das
duas agências no ano de 2005 temos o Banco do Brasil,
Correios e Governo do estado de Minas Gerais, que na
época tinha como governador Aécio Neves.
Mais da metade da verba publicitária
estava com as duas agências de Marcos Valério. Outros
clientes eram a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a
Eletronorte, Telemig Celular, Amazonas Celular,
Usiminas (segunda maior fabricante de aços planos do país) e
a Câmara de Deputados, único cliente dos órgãos
públicos que não quis encerrar o contrato com a agência de
modo imediato. Outro fato curioso ocorreu em
julho de 2005.
No meio do estopim de todo o escândalo da CPI dos Correios e do mensalão, a SMP&B foi
escolhida como agência do ano e os Correios anunciante do
ano pelo Prêmio Colunistas de Brasília.
A
Globo, sempre ela
Na história recente da corrupção do Brasil, o BV caiu como uma luva. Os políticos utilizavam-se
de agências de publicidade para colocar dinheiro
público destinado à propaganda oficial em veículos de
comunicação porque sabiam que parte do dinheiro voltaria em
forma de bonificação por volume para a agência. Aí
está uma das principais fontes do dinheiro repassado
por Marcos Valério para a mesada dos parlamentares.
Segundo fontes consultadas pela Revista Terça
Livre, 99% do BV utilizado por ele viria de serviços
prestados à Globo. E o mais curioso: impossível afirmar que o
dinheiro usado era público. Uma vez que o dinheiro das
estatais era usado no pagamento aos veículos de
comunicação, ele se tornava dinheiro privado.
Agora é possível dar a resposta para a
pergunta deixada em aberto na edição passada da Revista
Terça Livre. O então presidente Lula promulgou a lei 12.232 em 2010, lei que legalizava o BV, para poder
legalizar por tabela as malas de dinheiro de Marcos Valério.
Apesar das denúncias do mensalão terem começado a
aparecer em 2005, o julgamento do STF só ocorreu em
2012.
Além disso, em 2011, a então deputada
federal Ana Arraes (PSB – PE) foi eleita ministra do
Tribunal de Contas da União (TCU). Em seu discurso de
posse ela elogia Lula. Segundo um parlamentar que
participou da campanha dela, esse teria sido um gesto de agradecimento ao ex-presidente por ele ter
conquistado votos para Ana Arraes na Câmara, conforme
publicou o Estadão. No ano de 2012, o TCU emitiu um
parecer favorável a Marcos Valério, alegando que o
dinheiro utilizado por ele era de origem privada e
a prática do BV, legal. Ele não precisava devolver nenhuma
parte do dinheiro do BV aos anunciantes, como
consta na lei 12.232.
Apesar de uma lei que proíba algo não
possa ser usada retroativamente, ou seja, crimes cometidos
antes da promulgação dessa lei não podem ser por
ela julgados, aparentemente uma lei que legaliza uma
prática pode ser utilizada para legalizar atos cometidos antes de sua promulgação. Nessa estripulia judicial,
quem sai ganhando é a corrupção.
A influência do BV não se limita ao
mensalão. Essa poderosa fonte de propinas legalizadas
encontra-se também em outros esquemas de corrupção. As investigações da Lava Jato apontaram para
a agência Borghi/Lowe. O publicitário Ricardo
Hoffmann era na época vice-presidente e diretor-geral do
escritório da agência em Brasília. Ela tinha como um dos
seus clientes a Caixa Econômica Federal.
A Caixa Econômica (e, por tabela suas
loterias) é o cliente mais disputado pelas agências de
publicidade no país. Seus comerciais são transmitidos
nacionalmente e com grande constância. No ano de 2008, o
contrato publicitário da Caixa com a agência
Borghi/Lowe foi de R$ 260 milhões, enquanto que em 2013 o
valor chegou a R$ 1 bilhão. Lembrem-se de que o BV
costuma variar de 10% a 20% do volume total investido.
A Borghi/Lowe subcontratava outras
agências, e essas deveriam repassar para ela o BV. Essas
comissões eram, por ordem de Hoffmann, enviadas às empresas de irmãos do então deputado federal André
Vargas (PT-PR). Além da Caixa Econômica Federal, outros
clientes importante da agência Borghi/Lowe eram o
Ministério da Saúde, a Apex-Brasil, a BR
distribuidora e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDES). As empresas ligadas a Vargas nem sequer
existiam fisicamente, pois representavam apenas um
meio de se apropriar do dinheiro recebido da agência.
Uma dessas subcontratadas da Borghi/Lowe
era a agência de publicidade Pepper Comunicação,
que também fez repasse a pedido do escritório
de Brasília da Borghi/Lowe para as empresas ligadas ao
então deputado petista André Vargas. Isso foi
revelado pela operação Acrônimo, que tinha como um dos
seus principais alvos Fernando Pimentel (PT),
na época governador de Minas Gerais. A suspeita da
Polícia Federal é de que a irmã de Pimentel,
Carolina Oliveira, seria uma sócia oculta da agência.
A questão do BV parece ser um imbróglio
sem fim. A sucessão de esquemas de corrupção que se
sustentam sobre essa prática parece não acabar
nunca. O mais incrível é o fato de não se falar sobre isso. De que adianta ir aos sintomas se não se elimina
de vez a causa
da doença? O BV parece mais uma caixa de
pandora, quanto mais se mexe, mais iniquidades
emergem dela. Em nosso país, para falar de moralização é
preciso abordar primeiro a eliminação do BV. É uma
chaga que precisa ser extirpada, doa a quem doer.
Urge a derrubada da lei 12.232, ou então estaremos sempre
reféns de outros Marcos Valérios, Hoffmanns e seus
incontáveis comparsas.
Na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022, uma quinta-feira, enquanto o exército russo iniciava a invasão da Ucrânia, inicialmente pela região de Donbass, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursava, dirigindo-se às forças armadas da Ucrânia – “Exorto-vos a depor imediatamente as armas e irem para casa” –, aos cidadãos da Rússia – “tu e eu sabemos que a verdadeira força reside na justiça e na verdade, que está do nosso lado. E se assim é, então é difícil discordar do fato de que é a força e a prontidão para lutar que estão na base da independência e soberania, são os alicerces necessários sobre os quais se poderá construir o seu futuro de forma fiável, construir a sua casa, a sua família, a sua pátria” –, e ao resto do mundo – “Quem nos tentar impedir, e ainda mais para criar ameaças ao nosso país, ao nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e que levará a consequências de tal ordem que nunca experimentaram na sua história. Estamos prontos para qualquer desenvolvimento dos acontecimentos”.
Enquanto escrevo estas linhas, completam-se 21 dias desde esse ataque russo. O mundo continua chocado, confuso e apreensivo com a guerra que se iniciou entre dois povos que são, por assim dizer, aparentados. A história da Ucrânia é muito complexa, repleta de detalhes sutis e de influências externas, sem falar na constante e irregular alteração de fronteiras. Assim, para apresentar ao leitor um mísero fragmento representativo dessa intrincada história, poderíamos tomar o fato de que, durante os séculos X e XI, o território da Ucrânia tornou-se o centro de um Estado poderoso e prestigiado na Europa, a chamada Rússia de Kiev, o que estabeleceu a base das identidades nacionais das nações eslavas orientais nos séculos subsequentes – por exemplo: russos, ucranianos e bielorussos.
Em busca de luzes para um assunto tão desconhecido e obscuro para mim quanto a relação entre esses dois países – Rússia e Ucrânia – deparei-me com um conto do escritor Nikolai Gógol (nascido em 1º de abril de 1809 e falecido em 04 de março de 1852). Para minha surpresa, a pessoa do autor já traz à tona uma polêmica, pois, quando ele nasceu, sua cidade fazia parte do Império Russo, mas atualmente pertence à Ucrânia (Sorochyntsi, Domínio da Poltrávia, Império Russo; e hoje distrito de Myrhorod, oblast de Poltrava, Ucrânia). Como consequência, tanto a Rússia quanto a Ucrânia reivindicam a nacionalidade do senhor Gógol. Apesar de muitos de seus trabalhos terem sido influenciados pela tradição ucraniana, Nikolai Gógol escreveu em russo e sua obra é considerada por vários críticos como herança da literatura russa. O conto a que me refiro é parte de uma coleção de contos publicada pela primeira vez em 1835, sob o título de “Mírgorod”. O título “Mírgorod” é a pronúncia russa do nome da cidade ucraniana Myrhorod e significa – ironicamente, acreditem ou não – “cidade da paz” em ambas as línguas. É também o cenário da história do conto que finaliza a coleção, intitulado “O Conto de como Ivan Ivánovitch brigou com Ivan Nikíforovitch”, e que em Português tem sido traduzido como “A briga dos dois Ivans”. Essa foi a história que tive oportunidade de ler, e que é concomitantemente animada por um sentimento de alegria e de leveza, com momentos do mais puro pastelão, ao lado de um cinismo resignado sobre a condição humana.
Em suma, Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch são dois respeitáveis cidadãos de Mírgorod, nas primeiras décadas do século XIX. Apesar de muito diferentes um do outro, mantêm uma amizade que é objeto de admiração de toda a cidade. Vizinhos entre si, estão sempre a se frequentar para jogar conversa fora e cheirar rapé, além de irem à Missa juntos. A amizade de longa data chega ao fim por causa de uma discussão pueril, em que Ivan Nikíforovitch chama Ivan Ivánovitch de “galinha”, depois de se recusar a trocar sua cobiçada arma por uma porca e dois sacos de aveia. A desavença estende-se por anos a fio, agravada por depoimentos exagerados e mentirosos, que dificultam cada vez mais a reconciliação dos antigos amigos.
Por insólito que pareça, esse conto lembrou-me, ainda que apenas sob alguns aspectos, uma passagem bíblica do Primeiro Livro de Reis que trata sobre a história da “Vinha de Nabot” (1Rs 21). Nessa história, Acab, rei de Samaria, deseja a vinha de Nabot, o jezraelita, e tenta tomá-la para si, valendo-se para isso de falsos testemunhos e, por fim, do assassinato de Nabot. É possível traçar ao menos três paralelos nas duas histórias entre si e depois com a guerra que estamos analisando, cada um desses paralelos com um tema específico: cobiça, conflito e mentira. Nas duas primeiras histórias claramente aparecem os objetos de cobiça (a arma e a vinha), o conflito (a briga entre os Ivans e o assassinato de Nabot), e a mentira (os depoimentos mentirosos dos dois Ivans diante do juiz da cidade, e os falsos testemunhos contra Nabot).
Quanto à guerra Rússia-Ucrânia, de que estamos tratando, foi noticiado por vários meios de comunicação que o lado russo, durante várias semanas antes do conflito, vinha reiterando mais e mais categoricamente a sua decisão de não invadir a Ucrânia. Mentira! Vladimir Putin, em seu discurso do dia 22 de fevereiro, sobre a independência de Donetsk e Lugansk, afirmou: “a Ucrânia, para nós, não é só um país vizinho. É uma parte de nossa história e espaço espiritual que não se pode subtrair”. Cobiça! E o que tivemos como resultado? Conflito!
Como sempre aconteceu na história das guerras, chegará o momento em que a guerra entre Rússia e Ucrânia terá o seu fim, mas há uma pergunta que não quer calar: um cessar fogo trará realmente a paz a esses povos e evitará uma escalada de violência em outras regiões do planeta? Há o sério risco de que o epílogo desse enfrentamento seja um simples armistício, como na realidade o foi o Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra Mundial, que violou flagrantemente os termos de paz apresentados como base para a rendição da Alemanha, num tal espírito de inconsequência que fez o diplomata inglês Harold Nicolson exclamar: “Chegamos convictos de que seria negociada uma paz de justiça e sabedoria. Partimos convictos de que os tratados impostos a nossos inimigos não foram justos nem sábios”. Consequência disso: a Segunda Guerra Mundial.
Que paz poderá surgir de uma relação onde os corações estão inundados pela mentira e pela cobiça, sempre à beira do conflito? E não pensemos que só no governo russo há esse tipo de corações “privilegiados”. Dentre os apoiadores da Ucrânia estão muitos governantes e líderes pró-aborto, favoráveis à ideologia de gênero, defensores do fim da propriedade privada, promotores do marxismo cultural, arquitetos do transumanismo, praticantes do ativismo judicial, propagadores de psicoses ambientalistas, idealizadores de uma religião mundial que seja a simples soma de todas as crenças, contestadores do modelo judaico-cristão de família, executores do controle social através da tecnologia, entusiastas de uma moeda única global e de um governo único mundial, entre outras bizarrices. Esses governantes e líderes aprovam a guerra tanto quanto o Kremlin, porque também veem nela um catalisador para o processo que os leva à obtenção dos objetos de sua cobiça: a profunda mudança de poderes e de influência na economia, na cultura, na filosofia, etc. O verdadeiro e único plano é a destruição das bases que estruturam a Civilização do Ocidente.
O que é então necessário para uma paz genuína? Vejamos como termina a história da vinha de Nabot: Acab, que promoveu o homicídio de Nabot, sofreu uma ameaça de Deus por causa de seu pecado, mas fez penitência e jejum, recebeu o perdão e alcançou a paz. Daí se conclui que a verdadeira paz só nasce de uma fé genuína e de uma mudança de vida, de valores, de interesses, de postura. Enfim, é necessária uma conversão. Um simples cessar de disparos de armas de fogo não é o mesmo que a conquista da paz. A história do fim da Primeira Guerra Mundial já nos provou isso. Assim, enquanto o consenso dos maus, que está subjacente a esse conflito de superfície, não for neutralizado haverá apenas o equivalente à “paz que o mundo dá” (Cf. Jo 14,27), sem méritos, sem progresso, sem beleza, sem sentimentos, sem vida, e, essencialmente, sem Deus.
Nossos ancestrais já exerciam esse direito antes mesmo de aprenderem a se comunicar verbalmente. Faziam-no por meio de gestos, tal como, atualmente, pessoas com limitações auditivas se comunicam por meio da linguagem brasileira de sinais, conhecida como Libras.
Tem-se, assim, que a liberdade de expressão é um direito individual absoluto, não sujeito a limitação de
espécie alguma.
Um corolário do exercício do direito de expressão é que não permite nenhuma censura, seja por outros indivíduos, seja por qualquer instituição ou órgão governamental.
Não se pode confundir o exercício do direito de expressão com o que, por meio dela, se exprima.
Isso significa que qualquer pessoa poderá manifestar suas opiniões, casos em que o dito ou o afirmado possa ou não ofender direitos de outros.
Vale dizer que se o dito ou afirmado lesar direitos de terceiros, a estes caberá o direito ao contraditório, o direito de defesa pelas vias legais.
Nosso Código Penal já prevê as hipóteses de processos por calúnia, difamação ou injúria.
Assim, nenhuma manifestação de opinião poderá ser objeto de censura, seja prévia, seja “a posteriore.”
Inexiste em nosso ordenamento jurídico tipo penal para enquadramento do que, atualmente, se denomina “fake news” ou publicação de notícias ou opiniões desprovidas de verdade fática. Mas o que é ou não é verdade, só se poderá saber depois de manifestada publicamente.
Inexiste, também, permissivo legal proibindo meios de comunicação de divulgar mensagens e opiniões de seus usuários, por mais desbaratadas que sejam, por mais inverídicas que possam ser.
Se existisse, seria inconstitucional.
O meio de divulgação não se confunde com a mensagem por ele transmitida.
Não seria plausível determinar o fechamento de uma estação de rádio ou de televisão por divulgar notícias de seus anunciantes, comentaristas ou fatos do dia a dia.
Uma companhia telefônica também não poderia ser punida pelos atos ou comunicações de seus usuários.
Noutras palavras, deve-se distinguir entre o meio de comunicação e a comunicação que se faça utilizando esse meio.
Todos têm o direito de manifestar suas opiniões, quer sejam amparadas em fatos verdadeiros, que o sejam desprovidos de veracidade.
À divulgação de notícia desprovida de veracidade caberá outra que denuncie sua inverdade. Ou seja, a liberdade e o direito de apontar o fato inverídico.
A liberdade de expressão não admite forma alguma de censura.
Infelizmente, apesar de a vigente Constituição assegurar o direito de expressão e de vedar a censura, esses direitos fundamentais estão sendo, atualmente, violados por quem, por dever de ofício, jurara defender a Constituição.
Essas violações têm emanado principalmente de decisões do ministro Alexandre de Moraes, ao se pôr acima das garantias constitucionais de nossos direitos individuais.
Esse ministro age em desacordo com a Constituição quando não se limita a impedir o exercício do direito de opinião de pessoas físicas, de jornalistas ou mesmo daquelas que o façam por meio de blogs na Internet. Quando impõe a desmonetização de seus canais de comunicação. Quando determina a prisão de pessoas sem o devido processo legal.
Quando até mesmo vem a impor restrições ou limites a plataformas de Internet, como tem feito, chegando ao ponto de determinar o bloqueio do Telegram, que nem mesmo tem sede no Brasil.
Desde quando se pode alegar a prática de "atos antidemocráticos" no âmbito do exercício do direito de expressão, quando se trate apenas de manifestações verbais que desagradem ao agente público, ao juiz ou até mesmo a um integrante do Supremo Tribunal Federal?
Palavras não são atos. Ato é o que decorre de uma ação. Palavras que possam induzir atos ainda assim são meras palavras. E estas se inserem no âmbito do direito de expressão.
Ora, isso tudo não é censura?
Até quando isso será admitido?
Os tempos dirão.
Plinio Gustavo Prado Garcia, (USP e G.Washington Univ de Washigton D.C.) advogado em São Paulo, Capital; fundador de Prado Garcia Advogados (www.pradogarcia.com.br); foi professor de Direito Civil e Tributário; membro efetivo da Comissão de Direito Penal Econômico, da OAB/SP.
Fórum realizado em Londrina mostra
a força, a influência e a fecundidade da obra do filósofo brasileiro Olavo de
Carvalho (1947-2022)
Há 30 anos, quando era estudante de jornalismo e militante esquerdista, o telefone de minha república recebia diariamente várias ligações em que a pessoa do outro lado da linha perguntava:
― Alô, é do Cine Vila Rica?
O
tradicional cinema londrinense, situado no coração da cidade, tinha um número
de telefone muito parecido com o da nossa república, daí os frequentes enganos.
Se
não me engano, um dos últimos filmes que vi em cartaz no Vila Rica foi
“Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, uma história que agradou profundamente
o ateu e niilista que eu era na época. De lá para cá, acabei passando por um
longo processo de conversão religiosa e mudança intelectual, e quem acabou
desconstruído foi o esquerdista revolucionário que havia em mim.
Jamais
poderia imaginar que, três décadas depois, eu voltaria ao Cine Vila Rica para
assistir, não a uma comédia niilista sobre desconstrução de uma personalidade,
mas a um encontro de personalidades intelectuais que buscam a reconstrução da
alta cultura e da inteligência no Brasil. Muito menos, em 1990, eu seria capaz
de acreditar, nem nos meus piores pesadelos de militante, que esse encontro no
Vila Rica seria inspirado pelo maior filósofo conservador brasileiro dos
últimos 40 anos, Olavo de Carvalho (1947-2022).
Olavo
dizia sempre que nós somente podemos realizar aquilo que somos capazes de
imaginar. O 3º Fórum Educação, Direito e Alta Cultura, realizado neste final de
semana no espaço revitalizado do Cine Vila Rica, em Londrina, foi marcado, do
começo ao fim, pela presença das ideias e da personalidade de Olavo. Exatamente
dois meses depois de sua morte, o mestre da Virgínia comprovou que está mais
vivo do que nunca, e que seu trabalho renderá frutos, não apenas com a
publicação de suas obras inéditas, mas também na atividade intelectual de seus
alunos e admiradores.
Quando
digo que Olavo esteve presente do começo ao fim do Fórum E.D.A., não estou me
valendo de uma hipérbole, mas sim fazendo uma descrição fiel dos
acontecimentos. A palestra de abertura do Fórum foi precedida pela exibição de
um vídeo de Olavo, gravado em 2018, no qual o professor discorreu sobre o
futuro da inteligência brasileira e os descomunais obstáculos que será preciso
derrubar para resgatá-la. Parecia um vídeo gravado naquela manhã, como bem
observou a coordenadora e idealizadora do evento, Cláudia Piovezan.
Diego
Pessi, coautor do fundamental “Bandidolatria e Democídio” (2017), fez a
primeira palestra do evento apresentando seu mais recente trabalho, o livro
“Hooliganismo no Brasil”. Ao descrever a mentalidade do torcedor violento e as
práticas criminosas das torcidas organizadas de futebol, Pessi fez um retrato
das almas humanas corrompidas pelo desejo de extermínio do adversário. A
palestra seguinte, intitulada “Rio, uma cidade em guerra”, do juiz carioca
Alexandre Abrahão, coautor do livro “Guerra à Polícia”, compôs um trágico
painel sobre a luta desigual entre os traficantes e a polícia na cidade do Rio
de Janeiro. Pessi e Abrahão terminaram suas palestras em lágrimas, relembrando
a coragem de Olavo em denunciar o culto ao banditismo no Brasil e o heroísmo
dos policiais que todos os dias colocam suas vidas em risco para proteger a
sociedade. Em ambas as palestras, relembrei o caráter profético do artigo
“Bandidos e letrados”, publicado originalmente em 1994.
Olavo
estava presente também nas palavras do jurista Vitor Hugo Honesko, que
discorreu sobre “O totalitarismo sanitário na era da covid-19”. Baseando-se na
Teoria dos Quatro Discursos de Aristóteles, exposta por Olavo em seu livro
“Aristóteles em Nova Perspectiva”, Honesko demonstrou que a maioria esmagadora
das falas de autoridades política, burocratas e “especialistas” durante a
pandemia não passou de retórica, e retórica de baixa qualidade. Em quase todos
os casos, sempre que a palavra “ciência” foi utilizada ao longo dos dois
últimos anos, tratava-se de mero truque de convencimento, golpe aplicado por
indivíduos incapazes de sustentar uma discussão dialética de confronto de
visões diferentes, a única forma de atingir as certezas razoáveis ― e limitadíssimas ― que
constituem o verdadeiro pensamento científico. Uma
armadilha retórica utilizada pela mídia ou por políticos já seria em si lamentável; mas se torna criminosa quando
usada como justificativa para a violência e a arbitrariedade contra famílias,
trabalhadores e demais pessoas comuns.
O
primeiro dia do Fórum E.D.A. teve ainda a palestra “Mudança Climáticas: Ciência
e narrativa”, da cientista e professora Deise Ely, pós-doutora em ciências do
clima pela Universidade de Maryland (EUA) e a Universidade de Rennes II
(França). Foi uma verdadeira aula sobre as chamadas mudanças climáticas no
planeta ― um fenômeno muito mais complexo e antigo do que querem fazer parecer os
militantes do clima associados às grandes e poderosas instituições globalistas.
Olavo parecia estar presente na palestra da professora Deise ― tanto na humildade com que ela se
refere aos dados estruturais da realidade, como no “cancelamento” do seu nome
em determinados ambientes acadêmicos.
Na
noite de sexta-feira, um debate reuniu seis juristas ― Cláudia
Piovezan, Ludmila Lins Grilo, Sandres Sponholz, Simone Sponholz, Vitor Hugo
Honesko e Ricardo Peake Braga ― e este
cronista de sete leitores. Nossa conversa girou em torno de três livros que, juntos, constituem a mais enfática e vigorosa denúncia contra
a ditadura instaurada pela Suprema Corte brasileira: “O Inquérito do Fim do Mundo”, “Sereis como Deuses” e
“Juristocracia”, todos lançados pela Editora E.D.A. “O mais triste e
preocupante é saber que no Brasil de hoje prevalecem o crime sem castigo e o
castigo sem crime, como está escrito no prefácio de ‘O Inquérito do Fim do
Mundo’”, observou Cláudia Piovezan.
Uma
muralha de livros, porém, não pode ser facilmente derrubada ― como dizia Olavo. Disso bem sabem
Jean-Marie Lambert e Gabriel Giannattasio, respectivamente autores de “Educação Unesco ― A Clonagem das Mentes” e “O Livro Proibido ― Totalitarismo, Intolerância e
Pensamento Único na Universidade”. Embora não se conhecessem pessoalmente e
nada tenham combinado previamente, Jean-Marie e Gabriel fizeram palestras
complementares, em que descreveram as agruras da educação básica corrompida
pelas instituições globalistas e as tragicomédias da universidade brasileira
dominada pela esquerda. “A chamada ‘redemocratização’ brasileira foi na verdade
a tomada do poder da educação pela hegemonia progressista, quando o Brasil
celebrou seu pacto nupcial com a governança global da ONU”, disse Jean-Maria
Lambert. Logo em seguida, Giannattasio ― que lançou sua candidatura a reitor
da Universidade Estadual de Londrina ― emendou citando o convidado de honra do Fórum E.D.A.: “Nas
universidades brasileiras, a hegemonia da esquerda se transformou em tirania. E
Olavo de Carvalho é a mosca na sopa desse ambiente cultural corrompido”.
As
palestras de Lambert e Giannattasio foram brilhantemente complementadas pela
juíza e professora Ludmila Lins Grilo, que falou sobre a perversa dominação
ideológica nos 1.200 cursos de Direito espalhados pelo país. Em sua exposição,
Ludmila mostrou episódios exemplares da degeneração cultural no ambiente
universitário, apontou a baixíssima qualificação intelectual dos estudantes e
professores brasileiros e denunciou a sanha coletivista pela corrupção das
inteligências. Mesmo com todos esses problemas, Ludmila tem esperança na
regeneração da inteligência, por meio do testemunho de alunos e professores
dispostos a cultivar o conhecimento, ocupar espaços e cerrar fileiras na guerra
cultural ― na
verdade, a guerra espiritual em que estamos todos envolvidos.
Dois
juristas-escritores ― Márcio Chila e Harley Wanzeller ― também falaram sobre os
descaminhos do Direito no Brasil e no mundo. Na palestra “O Ativismo Jurídico e a Juristocracia nos EUA”, Harley comentou
os ataques e estragos que a militância esquerdista vem promovendo contra a
Constituição dos Estados Unidos e o legado dos Pais Fundadores da nação
norte-americana. “O originalismo não é imutabilidade, mas o respeito à
legitimidade daqueles que podem mudar a lei”, afirmou Harvey. Márcio Chila,
autor de “Globalismo e Ativismo Judicial”, mergulhou nas origens do processo de
corrosão da Justiça no mundo ocidental, levando-nos ao celebrado ― e, para ele, famigerado ― Código Civil
da era napoleônica. “O resultado desse processo é que hoje
estamos fazendo cada vez menos Direito, e cada vez mais sociologia jurídica”.
A
influência de Olavo também se verificou na participação de três talentosos
literatos: Luis Villar, Fábio Gonçalves e Diogo Fontana. Como se sabe, o
filósofo via a formação literária e a formação do imaginário como pressupostos
indispensáveis para a vida intelectual. Na palestra “A importância da
literatura e da educação clássica em tempos atuais”, o jornalista alagoano Luis
Vilar deu um valioso testemunho sobre a sua trajetória intelectual e
espiritual: “Passei a acreditar em Deus quando vi a pequenez da minha
inteligência perante a inteligência divina. E essa percepção só se torna
possível quando buscamos os mitos fundacionais e os cânones da nossa cultura”.
O escritor e editor literário Diogo Fontana, autor de “A Exemplar Família de
Itamar Halbmann”, descreveu o processo de criação de seus enredos e personagens
e chamou a atenção para a importância da literatura na expansão do horizonte
intelectual: “Nossos políticos encaram a literatura como algo menor e sem
importância. Mas as grandes lideranças do nosso tempo ― como Winston Churchill ou Charles
De Gaulle ― eram
homens com uma admirável formação literária, e
encontravam na literatura as respostas para seus maiores dilemas”. Fábio
Gonçalves, autor de “Um Milagre em Paraisópolis” e “O Retrato Doente e outros
contos de morte e solidão”, fez uma bela exposição sobre a importância do
domínio da linguagem para a superação da crise em que estamos mergulhados. “Há
uma crise cultural, uma crise da inteligência e uma crise da linguagem. Se
quisermos vencê-las, o passo inicial é dominar o uso da linguagem, começando
por formar pessoas que leiam e saibam compreender o sentido do que leem”.
O
encerramento do 3º Fórum E.D.A. ficou por conta daquele que Olavo de Carvalho
considerava o seu “aluno mais inteligente”: o cientista político, professor e
editor literário Silvio Grimaldo. Em sua palestra, Silvio trabalhou com os dois
conceitos de cultura discutidos por Olavo na obra “O Futuro do Pensamento
Brasileiro”: a cultura comum (também chamada etnocultura) e a alta cultura. A
primeira se refere ao que há de comum entre as pessoas de um determinado país e
perfazem uma identidade reconhecível entre os grupos sociais. A alta cultura,
por sua vez, se refere ao que há de melhor na produção artística e intelectual
de um povo, em obras que se voltam para a dimensão intelectual. A cultura comum
pode ser local, limitada, restrita e autorreferente. A alta cultura, ao
contrário, “nos liberta do provincianismo e do cronocentrismo; amplia nosso
horizonte intelectual; educa a nossa imaginação moral”.
Ao
defender a necessidade de reconstrução da alta cultura, Olavo de Carvalho de
certa forma procurou refazer o projeto socrático no Brasil. É fácil constatar
que a obra filosófica e a atuação pública de Olavo provocaram, nas elites
brasileiras, o mesmo desconforto, o mesmo escândalo e a mesma revolta que
Sócrates gerou na Pólis ateniense. As principais acusações contra Olavo,
afinal, são bastante semelhantes àquelas que estão na “Apologia de Sócrates”:
corromper a juventude e adorar outros deuses, estranhos aos da cidade. Esses
“deuses”, atualmente, são as ideias hegemônicas, transformadas em tirânicas
pela esquerda brasileira instauradora de uma religião civil que há mais de 30
anos manda no país. A única maneira de vencer Olavo, portanto, era silenciá-lo.
Ou matá-lo. Mas o Silvio Grimaldo tem uma notícia ruim para quem acredita ter derrotado
o mestre da Virgínia: seus alunos e admiradores se multiplicaram em centenas,
em milhares. E não vão parar NUNCA.
*******
PS: Depois
do 3º Fórum E.D.A., dormi e sonhei que o telefone estava tocando. Do outro
lado, ouvi a voz inconfundível:
― Alô, é do Cine Vila Rica?
― Sim, é daqui mesmo, Olavo.
Olhei
para o lado e vi uma muralha de livros. Então, acordei.
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