Edição XLVII (Terça Livre, Revista Esmeril 29, Opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 29
- Retórica, paranoia e mistificação: uma conspiração intelectual (Nati Jaremko)
- A justiça social (Vitor Marcolin)
- Idade Média, o que não nos ensinaram (Vitor Marcolin)
(matérias de edições antigas da revista que ainda são atuais)
Populismo seria sinônimo
de mentira? A questão é intrigante, mas advogarei uma resposta afirmativa.
Considero um povo genuflexo ao populismo o maior estímulo aos discursos populistas e seus parlapatões dribladores da verdade. Obviamente, urge não
apenas que os políticos sejam éticos e abandonem o populismo, mas que nós, povo do bem,
entendamos que devemos depender menos do Estado e mais de nós mesmos. Em suma: a primeira lição ética profilática ao
populismo está no apreço à autossuficiência, não somente para nos alforriarmos
das amarras estatais, como também para não onerar o próximo com nossas carências, indolências e imaturidades.
Após concretizado o desafio da autonomia financeira, emocional, intelectual e espiritual, estaremos diante da segunda lição do contexto ético, ou seja, o auxílio ao próximo. Nesta seara, devemos ter cuidado
redobrado com as armadilhas do narcisismo egocêntrico, e lembrar que o verdadeiro altruísmo emerge naturalmente da espontaneidade, ou seja, da voluntariedade ou facultatividade. Qualquer imposição humana neste sentido deverá ser classificada como tirania. Lembremo-nos que estadismo imposto ao seu povo requer uma despótica carga tributária, além de suas bizarras e também tirânicas obrigações burocráticas escravizadoras.
2. Desenvolvimento psicológico
Enquanto não perdermos a crença infantil no Estadismo (o Estado como responsável por nosso bem-estar social), seremos presas fáceis do populismo e do despotismo. Neste diapasão, e com certa jocosidade, convém lembrarmos a questão popular: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O fanatizável ou o fanatizador? O populista ou o comodista? Aqui, vale lembrar a advertência de Étienne de La Boétie, em sua obra Discurso da Servidão Voluntária, em que o saudoso escritor identificou e previu a bizarra situação da servidão voluntária e pleiteada pelo próprio tiranizado, como sugere o título da obra. Eis uma relação cíclica e parasitária, que se retroalimenta patologicamente, muitas delas materializadas em passeadas por mais “benesses” estatais.
A verdadeira demanda deveria ser por mais liberdade e menor carga tributária. Eis o slogan “mais Mises, menos Marx”, que denota incrível maturidade de alguns ativistas brasileiros. Lamento que nossos queridos vizinhos e irmãos argentinos ainda não estejam nesse nível de maturidade coletiva. Minha consciência diz-me que os chamados “direitos sociais”, presentes nos hábeis lábios dos políticos populistas, são justamente as correntes que escravizam os pagadores de impostos. Eis meu nível de maturidade espiritual. Se meu patamar de lucidez política agrada meus leitores, só Deus o sabe.
Penso que delegar a responsabilidade por nossa existência precária a algum agente externo seja uma das maiores imaturidades evolutivas da nossa espécie. Culpar coletivos por nossas mazelas personalíssimas e, finalmente, impor ao seu vizinho (o Estado) o ônus da superação de seus obstáculos pessoais, além de desonesto, tornará ainda mais difícil a conquista do protagonismo de sua própria existência. Esse comportamento imaturo da massa impensante, fanatizada e sedenta por mais escravidão não é apenas triste, mas também digno de nossa admoestação carinhosa em prol da liberdade destes espíritos.
A pueril ilusão e crença popular no Estado de bem-estar social ou em algum outro agente externo e responsável por nossa felicidade, lamentavelmente, oferta terreno fértil aos populistas, que se tornam tiranos com extrema facilidade. Além disso, a débil imaturidade evolutiva gera a ilusão e o fanatismo político, em que o Estado possa ocupar o lugar de Deus, e o populista de plantão preencha o arquétipo de novo messias. Em seguida, surgem os epítetos que cercam os populistas: “o libertador”, o “salvador”, o “caçador de marajás”, o “pai dos pobres”, e até mesmo comparações com Jesus Cristo. Sai de cena a frase religiosa “Deus proverá”, e entra no palco político a seita laica e sua crença no estadismo: “o Estado proverá”.
Os efeitos dessa falsa religião são absolutamente nefastos. O pior dessa paradoxal seita laica está na pseudo crença da infinidade de recursos estatais. Passou da hora da população adentrar na fase adulta e enfrentar a dura realidade: os recursos são limitados e o Estado jamais substituirá a necessidade do esforço personalíssimo e a verdadeira transcendência, tão vilipendiada no meio político. Em outras palavras, a solidariedade humana e os valores altruístas devem partir espontaneamente do nosso interior, jamais imposto despoticamente para espoliar o direito natural, patrimonial e moral do semelhante.
No sistema atual, os trabalhadores honestos e responsáveis passam a ter o encargo de sustentar cada vez mais parasitas. O desânimo ou revolta dos bons passa a ser uma questão de tempo, e a implosão social é assombrada pelo adjetivo “inevitável”. O resto dessa história está contida na obra de ficção da novelista russa naturalizada norte-americana Ayn Rand, A Revolta de Atlas, em que os empreendedores cansam de ser injustamente achincalhados pela burocracia e
aderem à indiferença. A arte imita a vida ou a vida imita a arte?
Foquemos na reflexão sobre uma dupla responsabilidade: a primeira envolve o populista, a segunda recai sobre nossos próprios ombros. Nas palavras do filósofo contemporâneo Luiz Felipe Pondé, “a política tomou o lugar da graça”. Os problemas do deslocamento dos temas filosóficos ou transcendentes para o território político parece-me óbvio, a começar pelo deslocamento político da realidade, terminando pelo estímulo à mentira e às promessas falsas (em outras palavras: populismo).
Feita a crítica aos lavradores do território fértil para o
surgimento de um político populista, adentrarei a responsabilidade personalíssima do político que optou pela dissimulação e pelo mentiroso populismo. Como sempre afirmei, o meio nos influencia, mas não é determinista. Vale dizer, o político não será populista apenas em
razão do
idiotismo da massa, mas apesar desse idiotismo. Em outras palavras, o político populista opta pelo populismo, pela mentira e pela dissimulação. Não há escusa tanto para o populista como para seus asseclas. Neste momento, reitero o jargão popular: a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória.
Portanto, descarto escapismos para os parlapatões populistas. No entanto, credito a responsabilidade pela desgraça política atual tanto para quem se deixa fanatizar como também para o político que opta pela retórica marqueteira, além dos “intelectuais úteis” que propagam e incentivam as panaceias que mitigam nossa responsabilidade individual e depositam a culpa por nossas mazelas em agentes externos, sejam eles os estereótipos dos militares “malvadões”, da elite “isso ou aquilo” ou qualquer outro coletivo da vez. Recuso-me a fazer parte dessa farsa política e, exatamente por isso, escrevo tais linhas com serena assertividade, a fim de concluir que somos responsáveis por nós mesmos, o que não nos impede de sermos solidários e amar o próximo. Todo o resto é covardia existencial.
3. Conclusão
Chamo a atenção para a responsabilidade dos próprios eleitores e, principalmente, dos educadores que não ofertam, no mínimo, as quatro principais perspectivas políticas aos seus alunos, a saber: 1. Libertarianismo (ilegitimidade do Estado); 2. Liberalismo clássico (Estado minimalista); 3. Conservadorismo (foco na moral e nos bons costumes); 4. Estadismo (Estado tributarista e responsável pelo bem-estar social). Sim, professores e eleitores são também responsáveis pela ignorância massificada.
Todavia, não mitigo nem recuo em um único milímetro sequer, ao sustentar a responsabilidade personalíssima do vigarista populista, aproveitador da crendice e da ignorância alheia. Todo agente político deveria ser obrigado a registrar seus valores e plano de gestão, e sofrer impedimento e afastamento imediato do cargo, além de cassação permanente do título de eleitor, caso não cumprisse as promessas de campanha. Simples assim.
Aprendemos na escola e nas
universidades que a Semana de 22 foi um marco na história do Brasil por
promover a renovação da arte e da cultura produzidas por aqui até então e
colocar o país em compasso com a marcha do desenvolvimento mundial, com relação
a qual estaria desatualizado.
Aprendemos que a Semana fora
encabeçada por grandes pensadores e artistas, intelectuais irreverentes e
inovadores, pessoas originais e questionadoras, apresentando muita perspicácia
em suas análises, críticas relevantes, e trazendo cultura de verdade a um país
acostumado às cafonices e carolices burguesas.
Somos alvejados por uma oratória
encomiástica que procura justificar a peculiaridade estética das obras da
Semana através, basicamente, de auto validação e tautologia: a premissa é que
as obras seriam boas e quem o afirma são seus próprios autores; se alguém
discorda, o faz devido à mente viciada numa estética retrógrada e em parca capacidade
de compreensão. Desse modo, transformam a verdade em algo misterioso e
acessível a poucos, o que faz com que exista um monopólio dos critérios de
beleza e excelência.
A retórica é poderosa, pois brinca
com inversões de sentido e criação de espantalhos. Transforma os detratores do
movimento em autoritários da estética, preciosistas tacanhos, entusiastas de um
passado idílico e até mesmo elitistas e machistas, quando surge a oportunidade,
ainda que as categorias identitárias apareçam numa associação evidentemente
forçada.
Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma “moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos “bombons” que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima (…)
Monteiro Lobato. Paranoia e Mistificação
A atribuição de um elitismo aos
críticos da Semana também é ultrajante; consiste ainda numa boa estratégia para
desviar a atenção para longe dos mecanismos de criação de poder arbitrário
utilizados pelo establishment intelectual até hoje. É, antes
de tudo, uma acusação vazia, pois não rebate as críticas em si e não defende
objetivamente o valor das obras produzidas.
Além disso, atribuem ao “oponente”
algo que eles mesmos fazem: não há nada mais despótico do que tomar uma decisão
monocrática sobre quais deveriam ser os critérios de análise de uma obra. E não
há nada mais elitista do que se arrogar a responsabilidade de redirecionar a
história da arte para que ela passe a estabelecer uma conexão com o povo,
vedando a esse último um contato digno com os clássicos.
O próprio Graciliano Ramos, em entrevista concedida a Homero
Senna , refere-se às grandes capitais do país como ambientes que incitavam a
soberba, a presunção e o embotamento da mente nos jovens literatas. Chega a
afirmar que as regiões “provincianas” contribuíram para que o artista entrasse
em contato com uma sensibilidade mais autêntica. Lógico que isso é uma
simplificação da questão toda; não estou afirmando que o processo de criação
seja tão determinista, mas é interessante – e bastante simbólica – a percepção
de um contemporâneo do movimento sobre essa prepotência disfarçada de
refinamento.
Graciliano
avalia, ao falar dos modernistas, que “enquanto outros procuravam
estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti”. E ainda: “os
modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a
Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o
mal“. Caracterizar o parâmetro
deles como arbitrário e rígido, ao mesmo tempo, é bastante perspicaz e
assertivo e condiz com a análise que tentei fazer neste texto de que há um
autoritarismo estético escondido sob uma máscara de
libertação.
A liberdade para
esses modernistas era entendida como a subversão de pilares estabelecidos ao
longo de séculos de pensamento e cultura sem necessariamente se obrigarem a
estruturar nada no lugar, era a transgressão pela transgressão e,
ainda assim, rebeldia que só valia se estivesse em conformidade com as regras
dos que se apossaram dos meios de expressão.
E não me entendam
mal, não pretendo aqui defender algo, que seria igualmente arbitrário e
reducionista, como a reação ao moderno por um apego preciosista e irracional a
algum passado ou a uma ideia impenetrável de alta cultura. Mas é importante que
se compreenda que o pensamento, típico do pós-iluminismo, de que é possível
produzir circunstancialmente um novo aspecto da vivência humana – aspecto este
que, aqui, seria a cultura – através de uma absorção centralizada de todas as
variáveis que circundam o tecido social do momento é, não só arrogante, como
também impraticável. E o resultado disso é, em geral, artificialidade e
imposição de alguma narrativa: já que não se dá o tempo necessário para que
algo seja compreendido organicamente, deve-se coagir os outros a introjetar o
“novo real”.
É isso que entendo quando leio o que
o autor de Vidas Secas fala sobre “importarem” algo ao invés
de trabalharem os sentidos. No artigo de Lobato, citado anteriormente, o
escritor expressa um pensamento semelhante:
Quando as sensações
do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para
que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a
harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em
“pane” por virtude de alguma grave lesão.
Monteiro Lobato. Paranoia e mistificação
Se as análises sobre uma criação
humana não se ancorarem em princípios que estão fora da obra e para além das
percepções subjetivas de seu autor, só nos resta confundir a realidade com a
combinação de sensações presentes na mente de cada um ou, como em geral
acontece, construir uma outra realidade a partir de uma mistura entre a defesa
do subjetivo absoluto com a obrigatoriedade de se aderir ao viés de
interpretação de alguns poucos.
Entendo que quando falamos em arte
incluímos também o gosto, e há, sim, uma zona nebulosa, para além de critérios
pragmáticos de qualidade e destreza intelectual. Acredito, contudo, que um bom
mediador entre objetividade e sensações imprecisas seja justamente a tradição.
Lógico que existe uma casquinha estética que varia ao longo dos contextos
históricos e que é difícil fazer um juízo de valor desse tipo de característica
em cada tempo, ainda mais quando somos fruto do próprio período que tentamos
julgar, mas alguns critérios foram selecionados para permanecer e isso diz algo
sobre sua importância para a nossa estrutura cultural.
Quando forçamos a inovação nesse afã
de criar familiaridade superficial entre a vida premente e a arte, abandonamos
a essência do que nos faz humanos – que é algo que transcende tempos e
“latitudes” – para usar a expressão de Lobato –, perdemos a estrutura, ficamos
sujeitos às instabilidades próprias de linguagens pobres e imediatistas, como
as contidas em manifestos e discursos ideológicos.
Conhecer a estrutura permite que
tenhamos à nossa disposição as ferramentas para desenvolver a individualidade
de maneira realmente elaborada. Essa junção da base cultural com a
singularidade de cada homem, no seu momento histórico, com sua bagagem própria,
através de um processo honesto de expressão – e despido da soberba de achar que
pode, sozinho, colocar-se no lugar daquilo que foi construído ao longo de 2500
anos de criação constante – é o que faz a boa arte e o que gera as boas
reflexões sobre o mundo.
Quando acusam de elitistas esses que
criticam a modernidade pela modernidade, esquecem-se do caráter limitante
dessas teorizações que professam a aproximação leviana entre a conjuntura em
que está inserido o sujeito e a cultura que ele consome. Por mais que esse
esforço pareça nobre, quando nos apegamos a esse tipo de estratégia,
esquecemo-nos de que o outro lado dela é privar as pessoas de tirar suas
próprias conclusões sobre as grandes obras.
Contribui-se, assim, com o achatamento
compulsório dos imaginários, que ficam absurdamente restritos à parcela da
realidade material com a qual o indivíduo tem contato. Eles tiram a referência
clássica e a substituem pela das elites pensantes do momento e não por
inovações populares orgânicas.
A Semana de Arte Moderna, assim como
outros produtos da intelectualidade mainstream, não foi resultado
de um processo espontâneo de modificação e popularização da cultura, ela foi, inclusive, literalmente financiada por
parte dos estamentos burocráticos, pela elite cafeeira, apoiada pelo então
governador de São Paulo, o futuro presidente Washington Luís; todos na ânsia
extravagante de afetar erudição. Esses modernistas entendem-se o tempo inteiro
como rebeldes, sendo que são justamente quem domina o
sistema.
Toda essa confusão entre alta cultura
e elitismo fica bem esclarecida por uma frase tirada de um desenho – fofíssimo,
diga-se de passagem – que é Ratatouille – provando que
bons insights podem, sim, ser apresentados sob os mais
diversos formatos: “Nem todos podem se tornar grandes artistas, mas um
grande artista pode vir de qualquer lugar”. Pobreza cultural nada tem a ver
com seu correspondente material.
Fontes consultadas
GURGEL, Rodrigo. Esquecidos & Superestimados.
GURGEL, Rodrigo. Percevejos, ideólogos – e Alguns Escritores
Ora, aconteceu que Samuel acabou por embirrar com as cenas de selvageria que, às horas de almoço e jantar, diariamente se reproduziam nos seus aquários. E por isso resolveu reformar profundamente os costumes do seu mundo aquático.
— Vou fazer a distribuição igualitária dos bens, disse-me um dia.
Nisso suspeito que lhe tivessem caído nos ouvidos frases de algum caixeiro-viajante, únicos mortais capazes de trazer a Ararucá fórmulas novas.
Como quer que fosse, Samuel gostara daquela e resolveu aplicá-la.
Dito e feito. Com pachorra de um sacristão, arranjou umas gradinhas num imenso aquário, para onde trasladou todos os peixinhos, por modo que, tendo a ilusão de mais ampla liberdade, cada um deles ficava separado dos outros, em escaninhos particulares. Estabeleceu assim, sob a aparência de um comunismo absoluto, completa separação entre os indivíduos da buliçosa grei. E em cada divisão distinta, onde nadava um único peixinho, Samuel deitava agora uma ração suficiente para engordar peixinho e meio.
A princípio, os resultados acompanharam estritamente as intenções do reformador. Os peixinhos parece que apreciaram em boa conta aquela tranquilidade desconhecida, que os livrava do afã de abocanhar o pão com o suor do seu rosto. Portaram-se educadamente, como bons rapazes, que não enxergam competidores. Samuel, satisfeito, radiava em sorrisos. Eu de mim, passada a novidade, comecei a achá-los perfeitamente desinteressantes. Estúpidos, mesmo.
E os peixinhos por fim começaram a pensar comigo. Enfastiaram-se. Já não corriam velozes em porfia de uma bolinha disputada. Antes deixavam-se ficar, de barriga ao ar, no fundo da cela, à espera de que o pão lhes viesse ter à boca. E o tédio, o mais negro tédio que tem assaltado almas, reinou no aquário. Os únicos movimentos, ali, eram de espreguiços e bocejos desalentadores.
Positivamente aquilo ia mal. Eu sugeri a Samuel a volta ao regímen antigo. Mas Samuel era reformador bem-intencionado e por isso culpava a índole dos peixes, desculpando a reforma:
— São uns imbecis estes idiotas: pois não veem que agora é que são felizes?…
Não viam. Não queriam ver. E, em breve, os primeiros sintomas de neurastenia surgiram. Houve tenebrosos conciliábulos entre os varões das grades. Os peixinhos, ao fim de algumas semanas, já não toleravam aquela vida. Resolveram acabar sinistramente com a situação.
E acabaram. Naquela quinta-feira, ao levantar-se, Samuel fora, como de costume, dar os bons dias à sua “rapaziada”. Mas, oh! terrífica visão para um amantíssimo coração de pai e de reformador: — de cada uma das gradinhas pendia, enforcado, um peixinho vermelho!
Tinham-se suicidado coletivamente.
Por isso, quando ao entrar perguntei por eles, Samuel me dera aquela resposta cheio de despeito. E desde esse dia apenas conservou a outra mania, relativa às barbas e menos propícia a desilusões.
De peixinhos e de regimens sociais não quer que se lhe fale. Uma vez que são incapazes de viver sem se esbofetear na conquista de um pão vasqueiro, detesta-os.
E repete-me, de vez em quando, quando para o espicaçar aludo ao caso:
— Vivam lá como quiserem, os estúpidos; devorem-se: é só para o que prestam!…
Com o que, desapareceu de Ararucá o último eco da questão social, voltando a paz de espírito a reinar desimpedida em todas as consciências.
Extraído de Vaz, Léo, O Professor Jeremias, Bom Texto Editora, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. O livro fora publicado originalmente em 1920.
“É um livro bom, cheio de verdade, cheio de humanidade. É uma obra de arte, segura, coesa, integral, profundamente sentida e maravilhosamente realizada”.
— Menotti del Picchia sobre O Professor Jeremias
__________________________
A imagem que temos da Igreja Católica e daquela sociedade que cresceu sob a sua autoridade espiritual e moral, a sociedade medieval, é, invariavelmente, negativa. Fundamentados num conjunto carcomido de clichês, os propagandistas anticatólicos e antimedievais tentam, há três séculos pelo menos, dar verossimilhança à ideia de que a sociedade precisa libertar-se das amarras da religião e entregar-se integralmente à administração dos homens de ciência.
Um único fato basta para desconfiar de suas propostas: o Estado Moderno, em nome dos mais esdrúxulos projetos de transformação político-social, encomendou a morte de mais pessoas do que todas as guerras, catástrofes naturais e doenças da Idade Média e da Antiguidade somadas. A conclusão é óbvia: vivemos sob o governo viciado da Democracia, aquele que Aristóteles, no livro III da Política, identificou como Demagogia.
O âmbito acadêmico, gênese de um sem-número de esquisitices que impactam a esfera cultural, funciona como uma espécie de megafone para a propaganda anticatólica. Poucos foram os historiadores sinceros o bastante para denunciar o status quo relativo às narrativas, à formação da opinião pública, à imagem da História veiculada pelas Universidades. Régine Pernoud consta no rol dos historiadores sinceros — e, ipso facto, as bibliografias dos cursos de humanas no Brasil dificilmente subscrevem o seu nome.
Sob a perspectiva dos acadêmicos desta terra, Régine é uma quimera: uma mulher erudita, do meio universitário, mas que não tomou o partido do “empoderamento” feminino. Não. A historiadora francesa dedicou sua longa vida à investigação da Idade Média realizada livremente, sem as amarras dos compromissos ideológicos firmados — desconfiadamente — entre aqueles intelectuais cujo único propósito na vida é a conquista do prestígio acadêmico.
Dona de uma prosa fluida, agradável e clara, Régine trata, no seu Idade Média, o que não nos ensinaram, dos preconceitos que levaram ao descaso, no âmbito do ensino, com a historiografia daquele período. Não só. No livro, a historiadora tece comentários lúcidos sobre o desenvolvimento da arte e o papel da mulher naquela sociedade. Facilmente pode-se supor que o livro não é profundo, talvez seja verdade, mas o valor objetivo da obra está no fato de apresentar novas perspectivas sobre um período histórico tão injustiçado.
Compre o livro AQUI.
“Residência e peregrinação, realismo e fantasia, tais são os dois polos da vida medieval, entre os quais o homem evolui sem o menor incômodo, unindo um e outro e passando de um a outro com uma facilidade que não voltou a recuperar desde então”.
— Régine Pernoud
Mais
de trinta anos após o fim da chamada Cortina de Ferro, os russos estão de volta
ao protagonismo geopolítico. Desta vez, em ações bélicas reais contra a
Ucrânia, convertidas em ameaças à segurança e hegemonia ocidental.
Em
meio ao clima de tensão global crescente, vale a pena relembrar produções que
destacam a Rússia na linha de frente da disputa pelo controle do planeta.
Lançado
em 2009, Salt se encaixa na modalidade de filmes em que a dualidade do
protagonista retrata com perfeição todas as facetas da influência russa no jogo
da espionagem internacional. Mais do que isso, o plot twist (virada da
história) coloca sobre as cabeças do público um ponto de interrogação gigante
sobre a verdadeira face da agente da CIA, Evelyn Salt (Angelina Jolie), que na
trama é revelada como sendo, de fato, Natasha Chenkov, uma russa infiltrada na
inteligência americana.
A
questão levantada em Salt é mais do que intrigante, quando se questiona sobre
quantos russos e americanos podem ter sido preparados, até mesmo sem ter
consciência, para atuar em solo inimigo com identidades secretas.
Clint
Eastwood é indiscutivelmente um dos nomes mais influentes e talentosos de
Hollywood, mas Raposa de Fogo não é de seus filmes aclamados. Ainda assim, a
produção de 1982 é uma das mais intrigantes. Estrelado e dirigido por Eastwood,
o drama tem um roteiro engenhoso, onde um ex-piloto de combate que atuou no
Vietnã, Mitchell Grant (Clint Eastwood), é treinado para se infiltrar na Força
Aérea Soviética e roubar o sofisticado Mig-25. O problema (ou a solução) é que
os comandos do avião só funcionam por comandos mentais na linguagem russa, algo
que Grant acaba por resolver com rara maestria.
Nada
como um roteiro baseado em fatos convertido em filme de forma magistral. Coube
o feito ao genial Steven Spielberg e ao protagonista da trama, Tom Hanks. Em
Ponte dos Espiões (2015), Hanks é um advogado que aceita a incrível tarefa de
defender um espião russo capturado pelos Estados Unidos e que se transforma em
moeda de troca para recuperar o piloto norte-americano, Francis Gary
Powers.
Para
refrescar a memória histórica, Powers controlava o avião de reconhecimento
Lockheed U-2 em uma missão praticamente suicida sobre os céus soviéticos em
maio de 1960. Após sua captura, Powers foi julgado e sentenciado a 10 anos de
prisão por espionagem. A história de sua eventual soltura é contada em Ponte
dos Espiões.
Não
se trata de um filme de terror, mas O Dia Seguinte pode ser categorizado como
uma das produções que mais casou temor à juventude dos anos 1980 em suas 2
horas e 6 minutos de pura catástrofe nuclear. Dirigido por Nicholas Meyer, o
longa de 1983 conta a história da reação da OTAN a um ataque soviético a
Berlim. Ao invés de sanções, o conflito se transforma no evento mais
temerário da humanidade: uma, até então, inimaginável guerra nuclear.
Baseado
na obra de John Le Carré (o mesmo autor do livro que deu origem ao longa O
Jardineiro Fiel), O Espião Que Sabia Demais (2011) apresenta Gary Oldman em
mais uma atuação brilhante, sob a direção de Thomas Alfredson. Desta vez,
Oldman é George Smiley, um veterano agente secreto britânico que é forçado a
deixar sua aposentadoria para impedir que segredos do ocidente continuem a
chegar nas mãos dos Soviéticos. Outro ator inglês, Colin Firth (O Discurso do
Rei), se destaca como Bill Haydon, o antagonista da trama que se passa no ano
de 1973.
Nenhuma
lista de filmes sobre a Guerra Fria pode ser considerada completa sem a
presença do mestre Stanley Kubrick. O diretor americano assina Dr. Fantástico,
uma rara comédia do gênero lançada em 1964 – um ano após a morte do presidente
John F. Kennedy. Em outras palavras, o filme foi exibido em um momento de alta
temperatura na relação Estados Unidos-União Soviética.
Apesar da tensão, Kubrick decidiu transformar o eventual thriller em um filme
cheio de humor, cortesia do roteirista Terry Southern e das atuações magníficas
dos especialistas no gênero, Peter Sellers e George C. Scott.
Além
dos longas temáticos, The Americans coloca de forma meticulosa o expectador no
centro do conflito entre EUA e U.R.S.S. no auge da Guerra Fria. A série é
baseada na rotina secreta do casal Elizabeth (Keri Russell) e Philip Jenings
(Matthew Rhys), que na verdade atuam como agentes soviéticos da KGB infiltrados
na sociedade norte-americana.
A
ação militar russa sobre o território soberano da Ucrânia não foi suficiente
para provocar uma solidariedade bélica da comunidade internacional. As muitas
reações de contrariedade com a decisão do presidente russo de invadir o país
vizinho têm se dividido entre medidas inócuas, como a resolução e os debates da
ONU; publicidade politicamente correta, com a decisão de grandes corporações de
sair da Rússia; e as sanções econômicas de outros Estados e da União Europeia.
Vladimir Putin tinha consciência de que as sanções econômicas viriam após a
agressão ao território da Ucrânia. Ele contava com isso e, seguramente, as
contabilizou no cálculo político que o levou à decisão de atacar. A Rússia
enfrentará dificuldades, não há dúvida, mas existem caminhos a seguir para
buscar compensar as perdas e os boicotes. E o caminho principal e mais óbvio
tem cinco letras: China.
PARA
CADA PUNIÇÃO OCIDENTAL, UMA SOLUÇÃO CHINESA
Se a
Apple deixou o país, a Xiaomi ampliará seu espaço no mercado russo. Se o
petróleo e o gás russos ficarem sem mercado, a gigantesca necessidade
energética chinesa está de braços abertos para comprá-los. Para cada empresa
multinacional ocidental que sair da Rússia, há algumas outras chinesas para
abocanhar o mercado. Há, ainda, a possibilidade do Estado russo encampar
parques industriais estrangeiros e aumentar sua participação na economia.
BLOCO
EURASIANO
Mas,
só nesses dois exemplos, os mais prováveis, percebemos que as sanções à Rússia
podem acabar por fortalecer o Estado russo e sua relação com outro Leviatã, o
Estado chinês. A pretensão ocidental de punir a Rússia pode estar, na verdade,
jogando-a de vez nos braços da China, consolidando o bloco eurasiano. Um
cenário que gera uma união capaz de polarizar com os EUA e recriar um mundo
semelhante ao da Guerra Fria.
O
EXEMPLO ALEMÃO
Nós
temos um exemplo histórico não muito distante das consequências que as sanções
econômicas podem gerar sobre um país. O Tratado de Versalhes e suas rigorosas
imposições contra a Alemanha provocaram a ascensão da reação nazista. Quais
serão as consequências que as sanções à Rússia legarão ao mundo?
REAÇÕES
RIGOROSAS SÓ ATENDEM AOS INSTINTOS PRIMITIVOS A
ação militar de Putin é, portanto, um movimento muito mais sensível no
tabuleiro geopolítico do que pode parecer à primeira vista. As reações devem
ser muito bem medidas e não devem atender ao instinto das turbas, mas à solução
negociada e inibidora. Do lado agressor o que encontramos é um Estado que,
embora não seja economicamente tão forte como já foi, possui ainda um grande
arsenal atômico, além de um líder obstinado, frio, violento, preparado e com o
suporte da maior agência de inteligência do mundo. Embora para o senso comum
pareça uma atitude covarde, as grandes potências não erraram ao não entrar em
guerra com a Rússia em solidariedade à Ucrânia, mesmo que indiretamente, com
fornecimento de suprimentos em larga escala. Este seria um movimento
irresponsável e de consequências imprevisíveis.
AS
CONSEQUÊNCIAS DAS SANÇÕES
Menos
imprevisíveis, porém, são as consequências da guerra econômico-financeira que
vem sendo feita contra a Rússia de Putin. Talvez seja conveniente moderar este
arsenal também, para não alterar o equilíbrio geopolítico de maneira ainda mais
desfavorável para nós do lado de cá do mundo.
BIDEN,
O PROVOCADOR
O
presidente dos EUA, Joe Biden, já deu ao congênere russo de bandeja a desculpa
que ele precisava para iniciar as hostilidades contra a Ucrânia quando em novembro
passado seu governo e o de Zelensky, da Ucrânia, assinaram uma Carta de
Parceria Estratégica, que confirmava o apoio dos Estados Unidos ao direito de
Kiev de se tornar membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Agora, Biden segue capitaneando as reações pelo caminho das sanções rigorosas e
que parecem perseguir obstinadamente uma reação mais violenta de Vladimir
Putin. Um exemplo está o boicote ao petróleo russo ao qual Putin já ameaçou
reagir encerrando o fornecimento de gás para a Europa.
NÃO
HÁ MOCINHOS
Não
há mocinhos nessa história. Biden, Putin e Zelensky têm, cada um, sua parcela
de responsabilidade por causar esse conflito, cada um a seu modo e com maior ou
menor responsabilidade. A comunidade das nações e seus Estados não devem
aceitar a ação militar de Putin e o modelo de reação de Biden, tampouco deixar
Zelensky negociar sem apoio de países neutros.
O
PAPEL DA UCRÂNIA NO EQUILÍBRIO GEOPOLÍTICO
A
Ucrânia exerce no contexto europeu um papel de “zona de amortecimento”. Seu controle
pela Rússia ou pelos países ocidentais desequilibra o jogo. A Rússia não pode
mesmo aceitar a integração da Ucrânia à OTAN, embora este seja um país
soberano, pois isso ameaçaria a segurança russa. A Europa não pode aceitar a
tomada da Ucrânia pelos russos, pelo mesmo motivo. Se a intenção da Ucrânia de
entrar foi apenas uma desculpa para o projeto do pan-eslavismo de Putin, não há
justificativas para o presidente russo colocar tal projeto na mesa de
negociações. O caminho é buscar uma negociação que dê à Rússia e à Europa a
segurança de que o território ucraniano será militarmente neutro e não
oferecerá riscos a russos e europeus.
FORA
DA NEGOCIAÇÃO NÃO HAVERÁ SOLUÇÃO
Se as chances de uma negociação são difíceis, não buscá-la não pode ser uma alternativa. A via militar é quase apocalíptica. A via das sanções criará um problema maior que o do atual conflito. O sacrifício da Ucrânia deverá ser o da renúncia de forças militares que possam ameaçar a Rússia e a perda de uma parte do seu território que garanta aos russos o acesso ao Mar Negro, um dos objetivos de Putin nessa história. Será o preço a pagar pela bobagem feita por Zelensky em aceitar a proposta de Biden de negociar com a OTAN.
Comprar |
Comentários
Postar um comentário