Edição LXXIII (Terça Livre, Revista Esmeril 40, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 40
- As derrotas do campeão (Roberto Lacerda)
- O primeiro crime (Leônidas Pellegrini)
Embora a ciência política seja vista, hoje, como um conjunto de elementos racionais e pragmáticos, a sua compreensão mais profunda exige a análise de aspectos pouco convencionais para um mundo cada vez mais materialista.
Atualmente, as pessoas costumam recortar apenas estes elementos práticos e visíveis quando pretendem estudar o panorama, descartando muitos outros, desconectando os vários aspectos que compõem as relações humanas e, portanto, a política.
Aristóteles ensinou que o homem é animal político e depende dessa habilidade para viver em sociedade. Por outro lado, o mestre estagirita não ignorou as características metafísicas que envolvem e dão singularidade ao ser humano. O aluno de Platão sabia que, apesar de permitirem o estudo independente, essas duas ciências fazem parte da essência humana e são inseparáveis na realidade: o mundo físico só pode ser compreendido quando a análise abarca também aquilo que está “além” dele, ou “meta”.
As relações humanas envolvem muitas camadas de significados, e para compreender esse aglomerado de símbolos e conexões é necessário observar cada um deles, dos mais superficiais aos mais profundos, sempre buscando uma análise de conjunto. A política, por ser a ciência que estuda ou aplica esses variados tópicos, exige a mesma aplicação. Sem buscar esse tipo de interpretação mais ampla, corremos o risco de permanecer na superfície, onde muitas vezes o que ocorre consiste em apenas reflexo ou consequência do que se originou nas partes mais profundas da existência humana.
O componente espiritual, formado por inúmeros elementos, desde os mais tradicionais, como os valores religiosos formais, até os mais exóticos, que mudam conforme a circunstância ou a época e misturam características desconexas e até contraditórias, normalmente funciona como um unificador dos conceitos, um “cimento” que junta todos os “tijolos” da experiência cotidiana e dá sustentação a uma “parede” composta por todos os dados da sociedade.
Apesar do ceticismo e do niilismo contemporâneos, a influência do ocultismo na condução das decisões mais importantes tem sido a regra, e não a exceção. Desde as primeiras civilizações os elementos não materiais ocupam o topo das causas e finalidades.
Não é possível rastrear a origem desta influência, tendo em vista que já nas primeiras manifestações conhecidas esse aspecto sempre esteve presente.
Em seus estudos sobre a religiosidade das civilizações antigas, Georges Contenau deixa evidente o protagonismo do ocultismo nas decisões culturais, políticas e até militares da Antiguidade. Seus achados sobre as civilizações da Mesopotâmia mostram uma sociedade submersa em ritos e símbolos que, mesmo sem fazer sentido aos olhos materialistas dos nossos laboratórios e universidades atuais, compunham a essência da cosmovisão daquelas pessoas e, acima de tudo, formavam a estrutura do tecido social e a base de sustentação do poder. De lá pra cá, o peso desta característica teve altos e baixos, mas nunca deixou de ter sua importância, mesmo que relativa. O mundo moderno insiste em rejeitar esses elementos nas análises do panorama geopolítico. Mas basta um estudo um pouco mais aprofundado para notar que esse preconceito acadêmico impede uma compreensão mais ampla da realidade e torna a visão dos analistas cada vez mais turva.
Não se trata de defender ou elogiar esse aspecto, mas de admitir a sua relevância e considerar o abstrato como possibilidade explicativa. Infelizmente, uma falsa identificação do Iluminismo como uma negação dos princípios metafísicos tem tornado a sociedade cega quando o assunto é a observação do comportamento das pessoas que dirigem ou influenciam a direção dos rumos da nossa civilização. Mesmo com eminentes ocultistas entre os grandes nomes desse período, o cientificismo tem camuflado interesses, métodos e objetivos dos poderosos.
O ocultismo, ou seja, a presença de componentes espirituais ou religiosos com características exóticas ou mesmo malignas, faz parte do conteúdo responsável pelo imaginário de lideranças políticas, e sem a observação desse aspecto é impossível compreender três questões essenciais à geopolítica: a finalidade, os meios e a motivação.
A finalidade de uma iniciativa nem sempre é declarada. Na verdade, quando tratamos da política de forma mais avançada, o segredo e a dissimulação fazem parte da própria estrutura de pensamento de algumas pessoas em posição de comando, e por isso costumam camuflar seus objetivos de maneira bastante eficiente.
Quanto aos meios, a obediência a premissas vazias de valores morais pode até parecer estranha para quem está fora do círculo, mas devido a uma repetição constante e metódica, para os niilistas que atualmente lideram iniciativas ideológicas totalitárias, suas atitudes sempre são plenamente justificadas pelo fim que perseguem. Essa é a explicação para a ausência de remorso mesmo diante das tragédias que estimulam ou promovem.
No caso da motivação ocorre algo parecido. Além de justificar por antecipação qualquer atitude, por mais cruel ou desumana que seja, a essência do desejo pessoal que move uma conduta é ainda mais facilmente camuflável, pois apenas Deus pode perscrutar o coração de um homem.
A implantação de uma Nova Ordem Mundial, ou sendo ainda mais preciso, a construção de uma nova civilização e de um “novo homem”, exige uma perfeita sintonia entre finalidade, meios e motivação. E a conexão entre estes elementos que utilizam a substituição dos valores por meio da destruição dos anteriores, só pode ser entendida quando direcionamos nossa atenção para os aspectos relacionados ao ocultismo. É o que pretendo fazer nesta série de artigos. Na próxima edição tem mais.
Alexandre Costa
Site: www.escritoralexandrecosta.com.br
Canal: www.youtube.com/c/AlexandreCosta
Autor de “Introdução à Nova Ordem Mundial”, “Bem-vindo ao Hospício”, “O Brasil e a Nova Ordem Mundial”, “Fazendo Livros” e “O Novato”.
O argumento de que “a direita não pode abandonar a política eleitoral” quando alertada de que não cuida da base cultural é absolutamente FALSO. Existem vários partidos de esquerda que sequer estão inscritos no TSE, mas estão PRONTOS para assumir no dia que puder. A direita tem página de Instagram e grupo de WhatsApp.
Se o argumento a favor do BBB Político fosse real, a direita estaria se organizando politicamente e deixando de lado o aspecto cultural, mas não: a direita ACHA que faz política e não sabe como dominar a cultura.
Quem desejar agir politicamente precisa iniciar uma estrutura partidária como faz qualquer grupo que deseja atuar em uma esfera que ainda não atua: TREINANDO.
Quantos partidos não inscritos no TSE a direita possui? NENHUM. O que a impede? NADA. Por que não faz? Porque não sabe. Por que não sabe? Porque não estuda. Ao fim, volta o problema cultural: é impossível querer ser astronauta sem saber cálculo matemático básico. Se a direita quer algo sem estudo, só servirá para ser uma lagarta conservadora que desabrochará em uma borboleta do Centrão.
O que mais assusta é o fato dessa lagarta ser um leão em cativeiro que só precisa treinar a sobrevivência na selva. E as hienas comunistas sabem disso, por isso continuam felizes de ver a direita sem estudo enquanto essas mesmas hienas obrigam os intelectuais, jornalistas e professores para o exílio.
É uma direita rica que vive a mendigar. Sem libertar-se desse complexo de inferioridade, além de burra, a direita irá morrer, sobrevivendo apenas no exílio.
Quem leu Shakespeare entenderá exatamente o que foi dito acima. Mas para quem não leu, assista o Rei Leão, pelo menos.
Aos desavisados, Allan dos Santos teve sua empresa de comunicação "Terça Livre" destruída da noite para o dia, e para muitos, Allan simplesmente sumiu do mapa, como aqueles aviões que desaparecem do radar no Triângulo das Bermudas e ninguém sabe dar conta do que aconteceu. Para uns poucos, houve uma certa indignação, mas essa geralmente dura pouco pois a vida continua e qualquer coisa que não atinja nossas vidas diretamente cai na categoria “cada um com seus ‘pobrema’”. Mas uma hora a ficha cai, como caiu para o amigo citado acima na conversa do Twitter, e o que parecia o problema dos outros na verdade é de todos. Para Allan, sua família e as outras oitenta famílias atingidas pelo bloqueio das contas bancárias do Terça Livre e a interrupção de suas atividades, restou em última instância o esquecimento.
As tentativas para destruir Allan seguiram a mesma cartilha que já havia sido utilizada com o professor Olavo de Carvalho: assassinato de reputação, cerceamento de meios de sustento de forma direta conspirando para que fosse demitido de qualquer jornal ou revista, derrubada de seus canais em redes sociais e do site de sua empresa, ou de forma indireta através de intimidação, coação ou perseguição a quem quer que ousasse apoiá-lo publicamente. Olavo reinventou o jogo, fundou seu Curso Online de Filosofia e seus frutos se espalham pelo mundo com alcance e velocidade maiores que sementes de dente-de-leão dançando ao sabor do vento. O tiro saiu pela culatra. Olavo não foi apagado. Ao contrário, esculpiu de forma indelével seu nome na História. Olavo venceu.
Esse assunto me lembrou uma cena do filme “300”, que conta a história da luta entre o rei espartano Leônidas e seus trezentos soldados contra as milhares de tropas do persa Xerxes. Em determinado ponto da narrativa, Leônidas se recusa a dobrar os joelhos e a submeter-se aos caprichos do persa. Xerxes ameaça Leônidas: além de matá-lo, a sua família e a seus soldados, apagaria o nome do espartano dos livros de história, para que o mundo nem mesmo soubesse que ele jamais tivesse existido. Como dizia o líder comunista Milton Temer: “Do Olavo de Carvalho não se fala”.
Com o Allan dos Santos não foi diferente: sem meios de sustento e de comunicar-se com sua base de clientes, fãs e seguidores, ele foi enviado para uma espécie de "gullag digital", a versão moderna da "Sibéria do Esquecimento" a qual Leonel Brizola se referia ao ter sido banido dos noticiários pelo magnata das comunicações Roberto Marinho, um personagem da vida real que talvez despertasse inveja ao próprio Charles Foster Kane da ficção.
Mas o gênio saiu da garrafa com o desenvolvimento da internet e o que antes eram poucas avenidas de mão única controlando e distribuindo apenas a informação que era conveniente à manutenção do status quo, agora são milhares de estradas de mão dupla com uma capilaridade instantânea e global. O Terça Livre continua bloqueado no Brasil, é indiscutível que a gullag digital ainda existe. Mas para toda ação há uma reação. Novas vias são encontradas, como se a liberdade agora reagisse como a hidra mitológica: corta-se uma cabeça, nasce outra lugar daquela.
Em tempos mais “civilizados”, quando uma caneta de fato tem mais poder que uma espada, a história se repete. No lugar de Xerxes, temos agora um outro careca que atende pelo nome de “Xande"; no papel do destemido Leônidas entra em cena uma versão mais magrinha, convenhamos, mas igualmente barbudo, corajoso e sem papas na língua. Seu nome é Allan dos Santos. Ao invés de trezentos espartanos, Allan conta com uma meia dúzia de fiéis amigos e com algumas dezenas, talvez centenas de apoiadores, que vencendo o arame farpado e o campo minado colocado entre ele e o público ainda conseguem fazer doações ou assinar os cursos que o Terça Livre oferece, agora à partir do exílio nos Estados Unidos. A vida é dura e sem luxos, sua filha continua doente, sua família continua longe e sobrevivendo na medida do possível, mas enquanto existirem pessoas com coragem suficiente para alinharem-se ombro a ombro com um cara comum como Allan para defender a liberdade nesse remake mundano da Batalha das Termópilas, ainda há esperança.
No filme, Xerxes falha em seus objetivos. O destino de Xande também é a derrota. Para quem ainda não percebeu, a caneta de Allan é mais poderosa que a de Xande, daí a resiliência do primeiro e o horror revelado nas atitudes arbitrárias do segundo. O careca possui o que se convencionou chamar de poder posicional, ou seja, seu poder vem de sua posição. Uma vez fora de seu posto burocrático, nem a prostituta rodando bolsinha na esquina de sua rua tem a obrigação ou o interesse em ouvi-lo, quiçá cumprir suas ordens. É bem verdade que enquanto sentado em seu trono e protegido por sua capa preta, o que não falta são putas para aplaudi-lo e obedecê-lo. Mas é um tigre de papel, basta uma lança de Leônidas pegando de raspão em sua face para provar aos demais que ele sangra e que não é um deus. Allan possui um outro tipo de poder, que podemos chamar de inter-pessoal. Ele é o que é. E milhares de pessoas conectam-se diariamente de livre e expontânea vontade para ouvir sua voz ecoando pela escuridão que a censura impõe aos brasileiros. Allan nunca parou de falar, nunca desistiu de lutar. E ele continua plantado na entrada da caverna da alegoria de Platão, chamando as pessoas à luz, agora mais uma vez com o megafone do Twitter em mãos.
O Brasil e o mundo vivem tempos estranhos, onde ficção e realidade se misturam em uma dança surrealista e às vezes diabólica. Nem o mais criativo escritor ou diretor de cinema poderiam conceber na ficção o que anda acontecendo na vida real. Oremos e vigiemos, para que daqui a algum tempo não tenhamos que pedir desculpas a mais Allans, Marias, Josés que sumiram sem deixar rastro. Ahn! Um último grito da porta da caverna, para quem ainda está perdido no escuro e procurando uma saída: sabe aqueles aviões que desapareceram no Triângulo das Bermudas lá no início desse texto? Pois é, um deles reapareceu no radar, o prefixo é TL 2023, e seu piloto é Allan dos Santos.
Como um político inglês superou as piores adversidades e humilhações e se transformou no herói da Segunda Guerra Mundial
Quando ouvimos algum dito popular sobre como a estrada para a vitória é pavimentada por nossas derrotas, ou sobre os fracassos serem importantes no processo de conquista e sucesso, talvez não seja raro torcermos o nariz ou pensarmos: “Que desculpinha de perdedor“.
Todavia, será menos raro encontrarmos pessoas com dificuldade quase intransponível em lidar com frustrações. Quantos desistem facilmente, ou se tornam violentos, frente às frustrações? E quantos preferem culpar outrem ou agentes abstratos como “o destino”, “o azar”, “o universo” etc., ao invés de olharem para si?
Se observarmos um dos maiores vencedores da história, será impossível manter o pensamento pueril de que só as vitórias são importantes. Me refiro ao maior herói da Segunda Guerra Mundial, Sir. Winston Churchill.
Como me alonguei mais do que o prometido à nossa diretora, resumirei e exporei em tópicos os principais fracassos e sucessos deste grande campeão.
- Era um gastador compulsivo, que viveu a maior parte da vida tendo mais dívidas do que rendimentos;
- Foi reprovado duas vezes pela Real Academia Militar de Sandhurst, até conseguir ingressar;
- Foi considerado o pior aluno em idiomas de sua escola, por não conseguir aprender latim e grego, mas se dedicou profundamente ao inglês;
- Foi feito prisioneiro em Pretória, durante a Guerra dos Bôeres, em 1899, mas conseguiu fugir;
- Como Primeiro Lorde do Almirantado sofreu uma derrota terrível na Primeira Guerra Mundial, em Dardanelos, que lhe custou a perda do posto;
- Entre 1922 e 1924 não conseguiu ser eleito ao Parlamento;
- Em 1940 é escolhido Primeiro Ministro;
- Apesar de ter liderado a vitória contra Hitler, seu partido perde as eleições em 1945;
- Em 1951 vence as eleições e volta ao cargo de Primeiro Ministro;
- Em 1953 recebe o prêmio Nobel de Literatura por suas memórias de guerra.
Mas falei sobre fracassos em batalhas durante a Segunda Guerra, pois já sabemos muito bem que foram superados. Um homem que suportou tantas vergonhas e derrotas e entrou para a história como um herói da nossa civilização.
Então… Será que devemos realmente surtar e gritar histericamente por causa de derrotas ou fracassos recentes? Ou por causa de um mal ambiente presente e baixas perspectivas de grandes vitórias a curto prazo? Devemos procurar culpados lá fora ao invés de olhar para dentro?
Prestou atenção nessa breve história sobre Churchill? Então já sabe as respostas! E se gostou, fique atento à Vida e Legado na próxima edição da Revista Esmeril.
O SUCESSO NÃO É DEFINITIVO, O FRACASSO NÃO É FATAL: É A CORAGEM DE CONTINUAR QUE CONTA
—Frase atribuída à Winston Churchill
Dias antes, quando ele apresentara seus dons para Deus, o Pai não se agradara tanto assim daquelas ofertas. E, para piorar, os animais que seu irmão Lhe oferecera haviam-no contentado muito. Caim sabia que a culpa na verdade era sua: ele oferecera aqueles produtos de má vontade, e havia guardado a melhor parte para si. O que oferecera ao Pai não era o pior de sua colheita, longe disso, mas também não era o que havia de melhor. Mas ele se recusava a admitir suas faltas, ainda mais depois da reprimenda que levou de Deus. No lugar disso, preferiu a revolta silenciosa. E teve ódio do Pai e do irmão.
Ia andando pelo campo, lembrando dos belos animais do irmão, e pensou que se fosse ele o pastor, tudo seria diferente, e seria ele o favorito do Pai. Remoía aqueles sentimentos sem parar, e seu ódio só crescia. Quando se deu conta, estava de frente para o rebanho de Abel, que, lá do meio das ovelhas, sorriu acenou para ele. Caim forçou um sorriso e acenou de volta, chamando o irmão:
– O dia está bonito, vamos dar uma volta no campo!
– Irmão – Abel limpava o suor da testa enquanto se aproximava – há trabalho a ser feito! Os animais…
– Vão continuar aí! Não sejas tão rigoroso, Abel, vamos aproveitar um pouco este sol, é rapidinho! Vamos…
O pastor olhou com pena para o irmão preguiçoso. Não conseguiu dizer não. E talvez fosse bom passar mais um tempo em companhia dele. Os dois andavam distantes, quem sabe não seria uma boa oportunidade para se reaproximarem? Abraçou Caim e foi com ele.
Foram conversando sobre as amenidades mais diversas, lembranças da infância, casos que não se cansavam de relembrar, as tantas brigas que tiveram por Caim sempre querer destruir alguma brincadeira do irmão caçula. Iam rindo de uma dessas rezingas quando pararam para admirar a paisagem: o sol já começava a se por, e no contorno de umas montanhas ao longe já se desenhavam uns arcos meio dourados, meio laranja. Era bonito, assim como o canto dos pássaros voltando para as árvores antes da noite.
Abel ia dizer ao irmão que já era hora de voltarem quando sentiu uma pancada na cabeça e caiu de joelhos. Caim acabara de lhe acertar com um cajado. O pastor olhou com para o irmão com os olhos arregalados e não conseguiu falar nada. Recebeu outra paulada. E outra. Então caiu de com o rosto no chão. Virando o pescoço, olhou para o céu uma última vez e conversou em silêncio com o Pai, pedindo perdão para o irmão, e desfaleceu. Caim jogou longe o cajado e saiu correndo, sem olhar para trás. Quando parou, acabou adormecendo.
Acordou com o balido das ovelhas de Abel, que se dispersavam pelo campo. Olhou para o seu corpo, viu o sangue seco do irmão que se lhe espirrara e tremeu. Então, escutou a voz do Pai, grave:
– Caim, onde está teu irmão Abel?
– Não sei – ele respondeu cabisbaixo – Acaso sou guarda de meu irmão?
E o coração de Deus, que já vinha arrasado com o que acontecera no dia anterior, doeu mais ainda, e Sua voz se fez ouvir furiosa:
– Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão ergue seu clamor da terra até mim!
– Eu…
– Mataste teu irmão! Por isso, serás maldito nesta terra! Quando a cultivares, ela não te dará os seus frutos! Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra!
Caim estremeceu mais ainda, e caiu prostrado diante de Deus. Chorando, disse:
– Pai, perdão! Perdão, mesmo que eu não mereça! Este castigo é pesado demais! Morrerei vagando nesta terra!
Então Deus olhou para o coração confuso de Seu filho e se apiedou dele. Mais brando, respondeu-lhe:
– Não será assim, mas qualquer um que matar Caim, será castigado sete vezes mais. Agora, levarás um sinal contigo, e este sinal impedirá que quem te encontre, te mate. Toma.
Naquela hora, enquanto Deus abençoava mais um mau filho e novamente sentia Seu coração dilacerado, Caim rumava para o Leste, ainda chorando, humilhado, arrependido e amargurado consigo mesmo. Em seu peito, sentia uma dor inominável, que lhe parecia muito maior do que ele podia aguentar. Uma tristeza que o acompanharia durante todos os dias enquanto ele vivesse.
Freyre é celebrado, seus livros têm saída, mas a classe mais ou menos amorfa da qual em geral esperamos o peneiramento das ideias, os “intelectuais” (professores universitários, curadores culturais, opinadores em geral), ainda hoje trata o mestre de Apipucos com condescendência, senão com franca oposição, a fim de mantê-lo cativo das etiquetas de reacionário e ideólogo da morenidade, alvo de predileção daqueles que hoje combatem o “racismo estrutural”. As ideias seminais de livros como Aventura e rotina (1953) e Para além do apenas moderno (1973) não chegaram a ser combatidas. Foram apenas ignoradas pelos palradores de maior visibilidade e nutridas à sombra, quase como uma boa-nova que se deve manter em segredo, por um círculo relativamente estreito de estudiosos, infelizmente muitas vezes de tendência especializada demais, até provincianos, e pouco atentos à vocação integradora, “multidisciplinar” e universalizante da obra de Freyre.
Similar é a posição de Olavo de Carvalho, falecido há exatamente um ano. Olavo atualizou as Humanidades no Brasil como talvez, antes dele, só o tinham feito Freyre e Otto Maria Carpeaux. É constrangedora a estreiteza mental, a pobreza de referências dos professores universitários e articulistas culturais que Olavo notabilizou em O Imbecil Coletivo (1996) por sua perfeita ignorância do circuito mais amplo das ideias – expandido por Olavo até o Oriente e até uma antiguidade remota –, que deveria prover os ditames básicos de qualquer discussão cultural. Ives Gandra Martins estava correto ao dizer que “Olavo é o mestre de todos nós”.
Olavo não se limitou a editar obras de Otto Maria Carpeaux e Mário Ferreira dos Santos: deu-lhes novas chaves interpretativas. Fez publicar três títulos importantes numa Biblioteca de Filosofia que dirigiu na editora Record, infelizmente logo abortada: um do filósofo francês Émile Boutroux, outro do filósofo romeno Constantin Noica, outro ainda do filósofo alemão Eugen Rosenstock-Huessy. Foi parte ativa na fundação de pelo menos duas editoras (É Realizações e Vide Editorial), cujos catálogos guardam as marcas das indicações bibliográficas que distribuiu em milhares de artigos e aulas, em dezenas de livros. Em suas aulas, vigorava como realidade aquilo que numa oportunidade disse ser sua missão: “vincular nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual do mundo”, “fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade”. Por isso, suas exposições podiam passar sossegadamente da crítica à modernidade para a crítica de críticos da modernidade como René Guénon, ou da filosofia da ciência de Edmund Husserl para a filosofia da iluminação na tradição persa, sem que lhe parecesse minimamente estranho o procedimento de por lado a lado, numa mesma frase, uma expressão brasileira chula e uma citação obscura de autor da antiguidade.
Em razão dessa amplitude de ideias e de estilos, e não menos em razão da novidade de seus métodos, Olavo torna-se um problema para a cultura oficial brasileira – se me permitem a expressão. Justamente sua autoridade, sua centralidade, o empurra para a margem do debate cultural, condenado se tanto ao papel de autor excêntrico – e ele o foi incontáveis vezes –, com esta ou aquela ideia interessante e uma prosa, vá lá, atraente, mas que jamais pode ser citado como autoridade em matéria alguma, tanto mais após associar seu nome ao governo de Jair Bolsonaro. Mais ou menos como em determinados meios universitários não é possível citar o nome de Freyre sem mencionar seu apoio ao regime militar.
Há, porém, uma razão mais profunda para a marginalização de Olavo.
Este não é o local apropriado para defender a originalidade de seu pensamento. O leitor gentil me perdoará a sugestão de que leia meu livro Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho (2020) caso queira conhecer algo da obra do último grande filósofo brasileiro (ou então aguarde o curso on-line que em breve irei oferecer sobre alguns aspectos seus). Mas gostaria de chamar atenção para um traço da obra de Olavo que importa ao nosso assunto: ele não só não aspirou a ser um intelectual universitário, cuja pesquisas já nascessem em formato palatável a esse meio, como de certa maneira não aspirou sequer a ser um intelectual.
O intelectual, como o conhecemos hoje, é uma criação do publicismo francês do século XVIII. Sua existência se liga intimamente às novas tarefas que os antigos clérigos, os letrados, viram surgir com a ampliação do “espaço público” que mediava entre realeza e povo, espaço aos poucos roubado ao poder absoluto dos reis e entregue à pena de gente de razoável cultura que não encontrara outro meio de viver senão dizendo algo de supostamente importante. O intelectual se torna o guarda de trânsito das ideias. Sobretudo um opositor do poder constituído, que ele próprio irá tentar uma hora dirigir a fim de sanar os males que tanto denuncia. O destino do intelectual será o de “transformar o mundo”, como queria Marx, ou “tornar o mundo melhor”, como dizem jovens e velhos piegas de hoje.
Olavo guardava completa incompatibilidade com essa imagem de intelectual; daí seu incômodo na década de 1990, época em que ainda tinha algum espaço na imprensa, em ser chamado de “polemista” a torto e a direito.
Toda a filosofia de Olavo de Carvalho vai no sentido de diluir as construções conceituais que confundem, e até obstaculizam inteiramente, a experiência que o indivíduo tem da realidade. Dos seus estudos de simbolismo a seus estudos da mente revolucionária, o filósofo sempre orbita a noção de presença, aquela faixa individualíssima da realidade que funda a própria possibilidade de que a conheçamos, e que, coisa fundante que é, não pode ser fundada pela própria cognição. Olavo peregrinou por várias culturas em busca de uma via de acesso menos atravancada ao real. Sabia que hoje precisamos de treino para refinar o tato de nosso intelecto, que toma as luvas com que apalpa o real pelo próprio real. No limite, a tarefa da filosofia de Olavo de Carvalho – e o cerne da revisão do pensamento moderno para a qual contribuiu – é dissolver-se em experiência. Tenho certeza de que ele aprovaria estas palavras do filósofo colombiano Nicolás Gómez Dávila: “Ingressamos novamente em épocas que não esperam do filósofo nem uma explicação nem uma transformação do mundo, mas a construção de abrigos contra a inclemência do tempo”. A ambição da obra de Olavo é desmesurada se comparada à humildade de seu objetivo.
Desmesurada até porque ainda se encontra em grande medida na condição de projeto. Na verdade, Olavo foi um projeto. Não que tenha deixado demasiadas coisas inconclusas (embora tenha deixado algumas, lamentavelmente, como o ensaio A marcha dos abismos), não que tenha descuidado do capricho formal que suas últimas obras pediam (embora tenha descuidado, sim, como narro neste texto sobre meu trabalho na preparação de alguns de seus livros), não que tenha desperdiçado energia com assuntos e pessoas que não mereciam sequer que ele lhes dirigisse a palavra (embora também o tenha feito). Não, não falo de nada disso. Falo do cerne de seu pensamento; falo da necessidade de desdobrar em obras de arte, livros e pesquisas os muitos tópicos de sua filosofia, como a desconcertante “teoria da tripla intuição”, coisa que ele mesmo não fez. Falo da necessidade de dar foros de cidadania à “teoria dos quatro discursos” nas mais diversas áreas do saber, e sequer me consta que suas mais óbvias aplicações à historiografia, tantas vezes sugeridas pelo próprio Olavo, tenham sido aproveitadas por alguém. As discussões da “técnica filosófica”, como Olavo a entendia, necessitam ir muito além dos rudimentos que expus em meu livro sobre o filósofo. Toda a sua multitudinária reação à filosofia de Kant permanece dispersa nas fontes mais heterogêneas, o que torna muito difícil ao estudioso, mesmo ao estudioso honesto e bem-disposto, inteirar-se do escopo de seus argumentos e aquilatar sua verdade ou erro – pois muitas vezes não resta claro nem a qual passagem de Kant ele está aludindo em algumas de suas críticas.
Poderia multiplicar os exemplos ad nauseam. Poderia avançar sobre o terreno mais espinhoso da necessidade de estabelecer um grupo de trabalho que ao longo de algumas décadas fixasse o texto das por ora improváveis Obras Reunidas de Olavo de Carvalho. Mas calma. Até porque não quero sugerir, como já me sugeriram mais de uma vez, que é preciso tornar Olavo um autor mais “acadêmico”.
A propósito, um professor livre-docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) certa vez me disse que o pequeno estudo de Olavo sobre as formas fundamentais de expressão humana, Os gêneros literários: seus fundamentos metafísicos (1991), poderia ser perfeitamente adotado para cursos de um semestre em departamentos de letras. De um professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) ouvi a afirmação de que Olavo estava para as Humanidades no Brasil, na década de 1990, como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos estiveram para os estudos poéticos décadas antes: foi alguém responsável por ampliar o leque de referências. E já ouvi de professor de artes da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), um partidário vulgar da esquerda, a confissão de que lia com o maior interesse os ensaios de Olavo na extinta revista Bravo!.
Recordo esses casos apenas para ilustrar como seria relativamente fácil tornar Olavo lido nas universidades: bastaria que aqueles que se queixam das universidades ingressassem nelas, participassem de grupos de pesquisa, pusessem Olavo entre as referências, o discutissem, o editassem. Há zonas relativamente incontroversas em sua obra, que poderiam ser aproveitadas. Tudo isso é muito importante, mas não é o mais importante. Interessa-me em primeiro lugar o que fazer de mim, a partir da obra de Olavo, como creio que deveria interessar aos demais alunos dele. René Descartes fez-se o protótipo do filósofo moderno (do bom filósofo, inclusive) ao dar as costas à universidade. A cultura mais pujante criada entre os séculos XV e XVIII veio das franjas das universidades, da borda cultural de agremiações e institutos, com mais patrocínio privado que estatal. E foi justamente grande parte dessa cultura que, num movimento oposto, se oficializou nas universidades a partir do século XIX. Nelas o intelectual se trancafiou novamente: se no século XV lia manuais nos quais se decantava uma rala beberagem de Pedro Lombardo e Aristóteles, agora passava a beber de um suco concentrado de historicismo que o entronava feito novo guia dos povos, pois que situado no ápice histórico a partir do qual julgaria – negativamente, presuma-se – todo o passado humano. Mais uma vez, o intelectual confunde o mundo com a confortável torre de marfim onde se alojou. Descartes hoje começaria por fazer implodir metodicamente essa torre.
À sua maneira, Olavo fez isso, e é provável que seu nome aos poucos passe a ser tomado em outros países como referência de um novo tipo de intelectual, que talvez não seja ridículo denominar intelectual por dissidência, o que é bem mais que um intelectual dissidente. Essa percepção se ampliará à medida que um grupo de pessoas tiver por sua obra a devoção que um Edson Nery da Fonseca teve pela de seu mestre Gilberto Freyre, num discipulado constante e criativo. É preciso exercitar a liberdade que Olavo nos deu, a qual irá independer de maior ou menor liberdade política. Milhares e milhares de páginas do matemático germano-francês Alexander Grothendieck (1928-2014) permanecem inéditas, na condição de autógrafos e datilógrafos que eram xerocopiados e hoje são digitalizados e repassados adiante. Seus alunos e os alunos de seus alunos mantiveram estudo vigilante e ativo de suas lições, ampliando-as em direções imprevistas, levando-as a universidades, institutos de pesquisa, mesas de café e publicações culturais mundo afora. Transformaram em magma criativo, até em elo pessoal entre indivíduos, o que aquele homem singular deixou disperso e inacabado numa vida de eremita, após dar as costas à universidade e perder-se por décadas em algum ponto dos Pireneus.
Não precisamos resolver todos os problemas do Brasil, nem esperar que a obra de Olavo seja respeitada, ou que todas as suas aulas e escritos sejam editados, para que façamos jus àquilo que ele deixou. Seu site, o Seminário de Filosofia, segue no ar com centenas de aulas e materiais de apoio; há dezenas de livros seus em catálogo. Apossemo-nos disso do jeito como está. A obra dele irá crescer na medida em que fizermos dela coisa nossa, na medida em que crescer em nós. Eu mesmo, tivesse esperado condições ideais de pesquisa, jamais teria escrito Conhecimento por presença. Façamos de seu último grande livro, Inteligência e verdade: ensaios de filosofia (2021), o eixo da sua posteridade. Assumamos o caráter de projeto que perpassa toda a atuação de Olavo e façamos dela não uma nova torre de marfim, nem tampouco um aríete com que arrombar os portões universitários, mas forma e matéria de experimentos culturais impremeditados e mesmo impossíveis de premeditar, que ainda estão para surgir nesta parte inglória do globo e nesta época de ocaso de grande parte do que conhecíamos por Ocidente. Não há o que lamentar: será divertido.
Nem tudo até agora foi divertido, contudo. Olavo teve a vida que escolheu, não a que merecia – menos ainda a que merecíamos nós outros, seus leitores e alunos. Optou, com todas as suas idiossincrasias, por ser um mestre, um professor full time, o que desnorteou muita gente, tentada assim a emular até seus gestos e gostos, quando não cada uma de suas palavras acerca de tudo e todos. Bem como desnorteou aqueles que nele não viram mais que a pátina do palavrão e do doesto, e que fizeram da fofoca uma régua pela qual medir sua obra. Que Olavo tenha feito um prognóstico errado ao afirmar que “Bolsonaro é o líder natural e predestinado da revolução brasileira” não deveria hoje escandalizar ninguém, pelo menos não escandalizar mais que o próprio fato de ele ter escrito isso – por maior que seja sua simpatia pelo governo anterior.
Se você teme pelo futuro do pensamento de Olavo, tranquilize-se com o fato de que as gerações vindouras entrarão em contato com ele em condições mais propícias. Olavo foi odiado pelo PT e pelo MBL, por militares e por bolsonaristas, por Fernando Haddad e por Marco Antonio Villa, por católicos progressistas e por católicos tradicionalistas, por muçulmanos e por militantes do movimento gay, mas vou parar antes de citar nomes de youtubers. É um currículo formidável, que não o isenta de erros nem o cobre com o manto de outsider imaculado, mas que assinala uma marca constante de sua atuação: Olavo viveu e morreu como corpo estranho no combalido organismo da cultura brasileira. Mas no futuro tenderá a surgir mais como ele mesmo, sem o ruído que hoje o cerca, e agigantar-se como fonte viva de cultura.
Em O futuro do pensamento brasileiro (1997), Olavo apontou quatro grandes “nascentes” da inteligência nacional: o pensamento jurídico de Miguel Reale, a sociologia de Gilberto Freyre, a historiografia e crítica de Otto Maria Carpeaux e a filosofia de Mário Ferreira dos Santos. Seria demais apostar que no futuro críticos serão tentados a incluir o pensamento de Olavo como uma quinta nascente criativa?
No futuro eu não sei, mas no presente ele é a nossa mais possante nascente criativa. E a mais mal aproveitada. Morto, Olavo nada tem a ganhar de nós: nós é que temos tudo a perder sem ele.
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P.S.: Já havia concluído a redação deste artigo quando Mariana Reis me informa de seu último projeto, o qual é, de tudo que diz respeito a Olavo, o que de mais importante aconteceu nos últimos anos: a criação da Olavo de Carvalho Academy, site destinado a abrigar cursos do filósofo com transcrições para o inglês. A intenção, além de tornar o trabalho de Olavo acessível a um público global, é reinvestir o dinheiro assim obtido em novas ações de difusão da sua obra. O primeiro resultado do trabalho meritório de Mariana e Pedro de Carvalho já está no ar, o curso “A formação da personalidade”, que Olavo ministrou em 2015.
Todos os meus mortos queridos
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