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REVISTA ESMERIL - Ed. 26, de 28/11/2021 (Uma publicação cultural digital e mensal de Bruna Torlay. Assinar a revista
ENSAIO
👆 Positivismo e Sua Influência na Sociedade Moderna
Não há dúvidas de que estudar Filosofia é um modo extraordinário de desenvolvimento intelectual. Nosso cérebro, como qualquer outro órgão, desenvolve-se através dos estímulos e, na Filosofia, encontramos um campo de reflexões quase ilimitado.
No presente texto, entretanto, ao invés de explorar o profundo oceano reflexivo, pretendo tentar mostrar aos leitores onde a Filosofia afeta nosso cotidiano. Para isso, nada melhor do que analisarmos as correntes filosóficas pós-iluministas, já que, com esse corte analítico, é praticamente automática a conexão entre Filosofia, História, Política e Sociologia. Portanto, já vale deixar claro que estamos tratando de Filosofia, apenas e tão somente, sob um dos ângulos possíveis de análise, qual seja a perspectiva do Conhecimento, ou melhor, refletindo-se acerca do processo de conhecimento a que o ser humano está afeito.
E, para tanto, decidi tecer algumas breves palavras acerca do Positivismo, corrente filosófica que nasceu na França no Século XIX e que influenciou sobremaneira a forma de pensar dos dias atuais. Inclusive, para fins desse texto, vou me permitir cometer uma quase heresia ao apresentar alguns conceitos baseados nos efeitos verificados na sociedade moderna. Tal expediente poderá ajudar as pessoas a terem uma correta consciência da corrente filosófica, recorrendo a elementos do mundo ao seu redor, não sendo necessárias grandes tergiversações. Isso porque o que pretendo, com a elaboração desse texto, é tornar os conceitos mais acessíveis àqueles que não demonstram muita familiaridade com o assunto e que, muitas vezes, veem na Filosofia algo muito distante de sua realidade.
Pois bem. O Positivismo teve como seu criador o filósofo Augusto Comte. Contudo, para conseguirmos contextualizar a gênese dessa corrente filosófica, é necessário fazer uma pequena digressão histórica, de forma objetiva e resumida.
Não é segredo para ninguém que a Grécia Antiga é o berço da civilização ocidental. A bem da verdade, praticamente toda a civilização ocidental acaba tendo na Grécia o seu ponto de partida, embora, obviamente, haja influências pontuais de outras culturas, até mesmo pelo fato de tais culturas, de certa forma, terem influenciado a própria civilização grega. Assim, nitidamente, vemos influência da civilização egípcia, dos hebreus, dos persas e de tantos outros povos na nossa formação. A posteriori, quando a civilização grega, praticamente, deu espaço à civilização romana, outras intersecções moldaram a cultura ao longo do tempo, como o contato com os povos germânicos, africanos, anglo-saxões etc.
Bom, voltando, então, ao período da Grécia Antiga, apesar de haver uma miríade quase infinita de filósofos e, consequentemente, de correntes filosóficas, fica relativamente fácil ver que, sob a perspectiva do Conhecimento, na Grécia, imperava um certo equilíbrio entre a racionalidade e a fé. Para os gregos, de um lado, era importante tentar entender determinado evento de acordo com a sua própria ocorrência física, caso ele, efetivamente, fosse materializável. Por outro, não se abandonava questões metafísicas que, aparentemente, estavam além da compreensão humana dentro dos critérios de verificabilidade.
Vale dizer que a análise de um evento por meio dos fenômenos/padrões verificados em sua ocorrência física, normalmente, limitava-se ao que chamamos atualmente de Ciências Naturais, ou seja, os fenômenos da Natureza. E veja que a própria Filosofia, nos seus primórdios, se pegarmos Thales de Mileto, era uma ciência que se dedicava muito mais às Ciências Naturais do que a questões existenciais e de autoconhecimento.
Naturalmente, foi-se incorporando ao pensamento grego questões alheias à ocorrência física de eventos naturais, como as questões existenciais, por exemplo. Não podemos esquecer que, embora houvesse na Grécia Antiga uma exaltação da racionalidade humana, da mesma forma, havia o culto a divindades e a propagação da ideia de que existiam valores muito maiores do que o próprio ser humano.
Essa forma de pensar teve eco durante toda a antiguidade, sendo, obviamente, questionada por outras formas de pensar, mas fazendo-se dominante até a inauguração da Idade Média, quando, aí sim, houve uma real revolução na maneira em que o ser humano enxergava o mundo.
Se pegarmos o pensamento dominante na Idade Média – e aqui não nos interessa investigar as causas que lhe deram origem ou a sua pertinência –, fato é que, naquela época, prevaleceu a ideia de que a verdade restava, única e exclusivamente, na doutrina religiosa. Com o advento das religiões monoteístas, ficava muito mais fácil concentrar o conceito de verdade nas mãos da única divindade existente efetivamente, o Deus único.
Não há dúvida de que a adoção desse paradigma abria uma oportunidade muito grande para a dominação do povo. Ora, se a verdade está, apenas e tão somente, em Deus e os sacerdotes são quem, unicamente, conseguem decifrar a vontade de Deus, é necessário obedecer aos sacerdotes. Veja que, aqui, há uma clara usurpação de competência, na qual a Igreja acaba por se tornar Deus, pelo menos, em relação à divulgação da verdade.
O ponto negativo dessa corrente filosófica, da dogmática religiosa, não reside apenas nesse poder exacerbado e, potencialmente manipulador, dos sacerdotes. Reside, também, no descarte de todo e qualquer outro método de produção de conhecimento. É por isso que qualquer conhecimento mais técnico-científico, naquele momento da história, era descartado, sendo, inclusive, muitas vezes, seus pregadores tratados como hereges, com todos os desdobramentos possíveis relacionados a essa alcunha.
Mas, verdade seja dita, apesar de nos parecer uma forma muito limitada de pensar, há coisas positivas que advêm dessa corrente ideológica. Embora saibamos de todos os excessos cometidos pela Igreja ao longo da época da Inquisição, certo é que o pensamento dominante não tinha como se desatrelar dos preceitos básicos do Cristianismo, que consiste em uma doutrina religiosa baseada no amor ao próximo, amor esse não entendido, assim, pela Bíblia, como uma virtude em si, mas uma ação de bondade em relação ao próximo. Ou seja, de forma bem resumida, apesar de todos os excessos e deturpações que possam ter sido cometidos pela Igreja, fato é que a forma de pensar o mundo era pautada em valores tidos como maiores do que o ser humano, valores esses que apontavam para boas ações.
Eu costumo dizer que o mundo tende ao equilíbrio. Ao longo da história, sempre que há um exagero em relação a algum aspecto; verifica-se uma reação contrária que, pelo menos, tenta recolocar as coisas em equilíbrio. Inclusive, essa mesma ideia acabou sendo comprovada por Newton com sua Terceira Lei da Física, que diz: “para cada ação há uma reação, de mesma intensidade e de direção contrária”.
Então, se a forma de pensar, que encontrava um certo equilíbrio entre racionalidade e fé na Antiguidade, acabou por ser aleijada da racionalidade durante a Idade Média, nada mais natural que houvesse uma reação em sentido diametralmente oposto. E isso começou a existir com o Iluminismo que, a grosso modo, foi um movimento filosófico de exaltação do ser humano e de suas habilidades cognitivas, intelectuais, artísticas etc.
E daí vem o Positivismo. O Positivismo, de forma bem simples e objetiva, poderia ser definido como a corrente filosófica que privilegia o conhecimento adquirido por meio das habilidades humanas.
Quando Augusto Comte nasceu, em Montpellier, em 1798, as correntes filosóficas mais proeminentes eram as baseadas no Racionalismo Continental, de Descartes e Espinoza, e o Empirismo Britânico, de John Locke e David Hume. Veja que racionalismo e empirismo já demonstram claramente a predileção pelo conhecimento verificado e entendido através dos métodos humanos de verificação e interpretação.
Uma forma de pensar importante de ser mencionada antes de adentrarmos, efetivamente, no Positivismo, é a forma de pensar que tinha Kant. Kant, apesar de ter desenvolvido um pensamento semelhante a uma espécie de ponto de intersecção do Racionalismo Continental com o Empirismo Britânico, merece uma especial atenção por conta do seu respeito a questões religiosas. Na minha leitura de Kant, eu vejo um pouco (ressalto o “pouco”) do resgate do pensamento filosófico da Grécia Antiga, já que, ao longo da sua obra, chegamos à conclusão de que, para ele, há verdade naquilo que se pode verificar, mas há, também, certas coisas verdadeiras, mesmo sem a possibilidade de verificação, porém, que devem ser consideradas simplesmente porque se deve acreditar válidas. Obviamente, essa concepção advém do fato de ser Kant um homem religioso e que, dessa forma, via-se bombardeado, de um lado, pela dogmática religiosa e, por outro, pelo pensamento estritamente racional.
O pensamento de Kant, portanto, é, talvez, o primeiro que traga essa clara divisão entre Ciência e Fé. Dali para frente, foi muito fácil chegar ao Positivismo, já que bastava desconsiderar a verdade advinda da fé. E que fique claro que, quando digo fé, estou me referindo exclusivamente à fé religiosa pautada em eventos não passíveis de explicação por meio dos métodos de verificação humanos.
É nesse contexto que Comte, partindo do patamar alcançado por Kant, inaugura o Positivismo, que, da forma mais simples e objetiva possível, podemos, mais uma vez, definir como a corrente filosófica que privilegia a Ciência em detrimento da Fé. O ponto fundamental nessa questão reside no fato de que tal entendimento deixa de ser aplicável apenas às Ciências Naturais e passa a ser aplicável, também, às, agora chamadas, Ciências Humanas. Assim, a própria relação interpessoal humana, seja no microcosmo da família, seja no macrocosmo da sociedade, passa a ser entendida como uma ciência. E é por isso que Comte é chamado por muitos como o pai da Sociologia.
Então, se a régua foi puxada de forma desproporcional para o lado da fé durante a Idade Média, agora, é puxada, com o Positivismo, para o lado da razão. É do Positivismo que derivam ideias ainda mais radicais nesse sentido, como o materialismo de Marx, teoria nominalista e o Cientificismo.
Esse é o contexto histórico necessário para entender, de forma simples, as origens da corrente filosófica em questão. De qualquer forma, adentrando ao que realmente nos interessa, qual o efeito disso na nossa sociedade?
Ora, é muito simples. Quando uma sociedade abandona os valores relacionados à Fé, acaba sendo pautada, apenas e tão somente, por conceitos humanos. Se, de um lado, valores como Justiça, Bondade e Liberdade parecem universais, numa sociedade positivista, tais conceitos dão espaço para regras criadas pelo ser humano exclusivamente para aquela sociedade. Tais regras, em tese, deveriam advir de um consenso científico. Contudo, Ciência, por natureza, não é consensual e, assim, faz-se necessário que haja uma autoridade instituída que determina qual o pensamento científico que deverá ser seguido.
O efeito prático desse fenômeno é devastador. Na prática, dá-se um “cheque em branco” para a tal autoridade constituída escolher as “verdades” que melhor lhe convier, sem que haja espaço para debates de ordem principiológicos. Conseguiu entender o motivo pelo qual a sua liberdade pode ser tolhida, por exemplo, com a decretação de uma quarentena que, pela autoridade instituída, é comprovada cientificamente? O valor universal dá espaço à tirania, sob o pretexto de respeito à Ciência.
No Direito, o efeito é ainda pior. As estruturas normativas criadas pelo Homem passam a valer muito mais do que a persecução por Justiça, por exemplo. Alguém aí já ouviu a tantas vezes repetida frase: “é injusto, mas é a lei”?
Diante de todo esse cenário, é fundamental repensarmos como iremos voltar ao ponto de equilíbrio. Nitidamente, da mesma forma que um mundo pautado, exclusivamente, na dogmática religiosa, é um prato cheio para o autoritarismo, um mundo onde se exclui valores morais e éticos maiores que o ser humano também o é. A solução cabe a nós. A discussão, como não poderia deixar de ser, é estritamente filosófica.
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