Edição LXXXVI (Terça Livre, Revista Esmeril 47, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 47
- O perdão enfurece a mídia (Vitor Marcolin)
- Socos na cabeça, no quadril e na alma (Leônidas Pellegrini)
O surpreendente caso de Natascha Kampusch
No livro 3096 dias, Natascha Kampusch descreve, com a lucidez típica das pessoas que enfrentaram grandes tribulações sem enlouquecer, sua experiência de cativeiro. Ela esteve sob o poder de um criminoso psicótico identificado com o nome de Wolfgang Přiklopil, um técnico de comunicações que trabalhava para uma grande empresa alemã — o típico sujeito que mantinha uma aparência de normalidade só para esconder o monstro que vivia dentro de si. Natascha foi sequestrada por Wolfgang quando tinha 10 anos de idade; ela estava a caminho da escola do seu bairro no subúrbio de Viena, Áustria. E dos 10 aos 18 anos a menina viveu aprisionada num cubículo no subterrâneo da casa do sequestrador.
O relato é narrado em primeira pessoa; o leitor tem, portanto, acesso à perspectiva da vítima, à visão de mundo de uma menina que passou o fim da infância e toda a adolescência como escrava de um louco. A curta vida pregressa de Natascha havia sido marcada pelos conflitos familiares, fora afetada pela crise conjugal dos seus pais. Ela vivera num lar instável: “Essa oscilação entre atenção e negligência em um mundo de relações superficiais acabava com a minha autoconfiança. (…) A criança pequena e autoconfiante deu lugar, aos poucos, a uma menina insegura, que deixou de confiar nos familiares”.
Durante os 3096 dias nos quais viveu presa no cativeiro, tendo de suportar toda sorte de violência física e verbal; humilhações morais e pressão psicológica dignas do treinamento do Bope ou das tropas israelenses, Natascha desenvolveu meios de não enlouquecer. O principal desses meios, porém, não agradou a imprensa sensacionalista. A menina havia sido sequestrada no dia 2 de março de 1998 e conseguiu fugir no dia 23 de agosto de 2006. Durante o curso das investigações, a polícia austríaca foi negligente na apuração de uma pista que poderia ter levado à libertação de Natascha ainda nos primeiros dias do sequestro. Mas não. Entraves burocráticos e políticos ajudaram — indiretamente, quero acreditar — Wolfgang, o sequestrador. A vítima atribuiu sua sobrevivência não a outra coisa, senão ao perdão. O que desagradou a mídia.
Frequentemente, a imprensa, ávida pela atenção dos leitores, inventa termos que não servem para descrever a realidade, mas que são assaz eficientes para estampar capas de matérias rentáveis. O termo “Síndrome de Estocolmo”, cunhado com o objetivo de descrever a cooperação voluntária — e até o afeto — da pessoa da vítima pelo seu sequestrador, é uma dessas intromissões midiáticas no âmbito da linguagem. Se a tal “síndrome” tem lá as suas assertivas, as suas justificativas psicológicas e psiquiátricas, elas não servem para a Natascha. Não.
“O único modo de lidar com isso era perdoar as transgressões do sequestrador. Eu o perdoei por me sequestrar e por todas as vezes que me bateu e atormentou. Perdoá-lo me deu poder sobre minha experiência e tornou possível conviver com ela. Se eu não tivesse adotado essa atitude instintivamente desde o início, provavelmente teria me consumido em raiva e ódio — ou sido destruída pelas humilhações a que era submetida diariamente. (…) Ao perdoá-lo, afastei suas ações de mim. Elas não podiam mais me diminuir ou destruir”.
Mutatis mutandis, Natascha Kampusch teve uma experiência análoga à de Anne Frank. Assim como a judia confinada no esconderijo em Amsterdã, a mente, o ser da menina presa no cativeiro em Viena foi submetido a um conjunto de experiências-limite que, se não fosse por uma forte disposição moral — desenvolvida durante a tribulação —, ela jamais teria sobrevivido. E essa disposição implica a compreensão abrangente, profunda da condição humana que é desprezada pelos vendedores de manchetes jornalísticas: o mal é uma realidade, mas o perdão também o é. O perdão liberta. E ele só pode advir da liberdade do indivíduo que, ainda que seja incapaz de verbalizar — como a menina no cativeiro —, entende que esse é o único caminho a seguir. No seu cativeiro, Natascha entendeu a realidade da permanente confrontação dialética que existe no âmago da alma humana.
“Todos se sentem desconfortáveis quando categorias como Bem e Mal começam a ruir e é preciso enfrentar o fato de que o Mal personificado tem um rosto humano. O lado escuro não cai simplesmente do céu, e ninguém nasce um monstro. Somos formados pelo contato com o mundo, com as outras pessoas, e é isso que nos torna quem somos. Temos, portanto, a responsabilidade final pelo que acontece em nossa família, em nosso ambiente. Admitir isso para nós mesmos não é fácil. E mais difícil ainda é quando alguém segura um espelho que nos obriga e enxergar”.
***
Destaco a excelente tradução de Ana Resende para a Verus Editora.
Milton Gustavo fala sobre seu romance de estreia
Em decadência há mais de duas décadas e esquecido em detrimento dos megaeventos envolvendo o MMA, o boxe, esporte que empolgou gerações, e que no Brasil contou com estrelas como Éder Jofre, Maguila e Popó, nunca teve grande espaço em nossas letras.
Isso até agora, pois o grande lançamento do mês de setembro da Editora Danúbio, O Deus oculto no canto do córner, romance de estreia do piauiense Milton Gustavo. A trama, focada na relação entre um treinador aposentado amargurado e um jovem talento em direção ao estrelato, envolve, muito além de socos na cabeça e quadril, fortes golpes na alma.
Confira a seguir a entrevista com o autor.
Revista Esmeril: Fale um pouco sobre você, sua formação como leitor, sua vocação literária e suas principais influências.
Milton Gustavo: Desde garotinho li bastante literatura. Meu pai assinava alguma espécie de clube do livro e também tinha o costume de comprar em bancas os clássicos que eram vendidos por fascículo, nos tempos em que ainda havia em nosso país um público para a grande arte.
Ainda naqueles tempos, de minha adolescência, a “folha ilustrada” tratava de literatura de verdade, e através daquele caderno cultural, pude conhecer José Saramago, Gabriel Garcia Márquez (este último me impressionou bem mais que o primeiro) e muitos outros autores do maistream literário internacional. Das obras de que descobri por conta própria, Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, foi a primeira que me impressionou verdadeiramente. São memórias muito sinceras de um período em que o autor, ainda um calouro, conviveu com alguns gigantes da literatura do século XX, como Fitzgerald e Ezra Pound. Curiosamente, eu não sabia quem era Hemingway e li sem sabê-lo. No fim do livro havia uma minibiografia; chorei quando descobri que aquele jovem com tanta vontade de escrever havia, anos depois, já laureado escritor, tirado a própria vida. Enfim, foi uma experiência literária que me ligou aos autores da “Era Jazz” durante toda a primeira juventude.
Posteriormente me interessei pelo romance sociológico francês do século XIX e pelos autores brasileiros ditos “regionalistas”. Li também um pouco dos russos, em especial Tolstói, a quem considero o “Pelé” do romance. Dito isto, os autores com quem mais me identifico são: Stendhal e José Lins do Rego (que curiosamente era um stendhaliano). Como eles, acredito que a literatura é uma experiência da vida, e não meramente da linguagem. De nada adianta a musicalidade das palavras e os delicados florões das orações, se o camarada não tem uma história para contar, e ninguém tem uma história para contar se não tiver maturidade espiritual para compreender a imensa complexidade da experiência da vida, ou pelo menos se esforçar para isso.
Revista Esmeril: Fale um pouco sobre O Deus oculto no canto do córner, seu livro de estreia na literatura. O que te motivou a escrevê-lo, e como foi o processo de produção?
Milton Gustavo: Alguns amigos, como Alexandre Marques, Pedro Almendra e, posteriormente, Christiano Galvão, Bruno Dutra, Maurício Righi e Eduardo Matos de Alencar, me incentivaram a escrever; os dois primeiros, antes mesmo de ter lido qualquer obra de ficção escrita por mim. Acredito que isso se deva ao fato de que sou um bom conversador e um piadista razoável, talvez seja o que os tenha levado a me incentivar. Escolhi então o tema do boxe porque era de mim conhecido (meu plano original, agora adiado, era escrever sobre a guerra do Paraguai). A partir daí formei um plot que acabou se adensando, porém o ponto de chegada ainda foi o que tinha planejado inicialmente.
Escrevi a maior parte do pequeno romance durante a pandemia, em que o Fórum e a Universidade (sou advogado e professor) permaneceram fechados. Então eu acordava, escrevia uma ou duas páginas, que revisava vagamente. À tarde lia romances e peças de teatro. No período de elaboração do romance, lia especialmente Stendhal, Balzac, Lampedusa e Shakespeare. No fim de tudo, entreguei uma cópia ao Pedro Almendra (crítico e editor da revista Unamuno), que fez uma leitura crítica que me ajudou muito a resolver certos pontos e abrandar a linguagem, que originalmente era um pouco selvagem. Encerrei e reli novamente, fazendo um ou outro retoque. Depois, percebi que o trabalho de correção jamais se esgotaria, então dei por concluído em julho de 2021. Em agosto recebi o aceite da Editora Danúbio, que foi a primeira porta em que bati. A sensação foi um pouco estranha, porque esperava passar um longo período oferecendo os originais e havia preparado minha cara para receber muitas negativas. Enfim, acho que tive sorte no início, meio e fim.
Revista Esmeril: Fale um pouco sobre o título escolhido para seu romance
Milton Gustavo: O título, segundo o grande poeta Ranieri Ribas, é uma “gaita galega”, um decassílabo com acentos na quarta e sétima sílabas, mas eu não sabia disso quando escrevi. Achei apenas bonita a aliteração e, depois que ele me explicou, entendi melhor o motivo de soar tão bem.
Quanto ao conteúdo, ele resume bem a trama do livro. Há um Deus oculto, que separa os dois protagonistas, pois suas diferentes perspectivas quanto à transcendência acabam afetando sua forma de ver a família, a vida e especialmente o esporte. Há uma tensão entre a moral dos gregos, que de certa forma, fundaram as competições esportivas em que o homem se tornava quase um deus, e a cristã, em que somos convidados a ser o último da fila e aproveitar a vida como um dom, não sacrificando-a jamais sob nenhum pretexto e em razão de nenhum projeto.
Lembro-me de uma entrevista, que não sei inventei ou se assisti, em que Nelson Piquet reconhece que o Senna era melhor piloto que ele. Mas ao final, diz algo mais ou menos assim: “Mas também, ele era capaz de bater um carro para ganhar uma corrida. Eu não, jamais arriscaria minha vida para ganhar nada; eu corria Fórmula 1 para pagar minhas contas”. Acho que essas diferentes visões da relação vida-esporte são um dos motes do livro, e isso é revelado sutilmente no título.
Revista Esmeril: Você tem mais obras em produção ou planejadas?
Milton Gustavo: Estou escrevendo um segundo romance, maior e, por vários motivos, mais ambicioso que o primeiro. É uma saga familiar, a história da decadência de uma família sertaneja. Uma espécie de Gattopardo, sem o príncipe de Salinas, sem os lindos bailes da nobreza siciliana e sem o Garibaldi invadindo o país.
O tema da decadência atravessando a carne de famílias ilustres tem me atraído bastante. É muito difícil explicar o declínio de um povo, ou da Igreja, ou da civilização cristã (seja lá o que isto queira dizer), mas, talvez, e apenas talvez, explicar a decadência de uma família seja possível. Se não for possível, talvez seja ao menos engraçado, especialmente no contexto cafona da grande bancarrota moral e intelectual brasileira. Achei que valeria a pena arriscar algo assim, porque refletir sobre a decadência de pequenos grupos, nos faz pensar sobre a decadência dos indivíduos e, por fim, na nossa própria. Nos ajuda a refletir sobre em que ponto morreram em nós as virtudes de nossos avós e dos avós deles; sobre como não somos testemunhas da queda de Roma, mas sim os próprios bárbaros. Deus me ajude a concluí-lo.
"Amontoado de células"; "Tecido"; "Apenas um feto". Essas são expressões comuns usadas pelas pessoas favoráveis ao aborto para descrever o nascituro, a fim de diminuir a humanidade dessas novas vidas. Porém, o modo como as pessoas rotulam os nascituros não é o que os define, e isso está comprovado pela vida de uma pequena criança. No verão de 2013, Walter Joshua Fretz nasceu com apenas 19 semanas de gestação. Ele viveu por poucos momentos, mas sua vida tem tido um impacto duradouro.
Os pais de Walter, Lexi e Joshua Fretz, mãe e pai de duas meninas (que acolheram sua terceira filha, Mia, no último mês de Setembro), aguardavam ansiosamente a chegada do seu novo bebê, quando, de acordo com o blog de Lexi, ela começou a ter sangramentos.
Isso não era algo incomum para ela durante a gestação, mas, quando o sangramento se tornou rosa, ela ficou mais preocupada e ligou para sua parteira, que a aconselhou a ir para uma Unidade de Emergência (Emergency Room, em inglês).
Na sala de emergência, várias gestantes chegaram depois dela e foram levadas diretamente para a enfermaria. Mas, uma vez que Lexi ainda não tinha completado 20 semanas – ela estava com 19 semanas e 6 dias – as normas do hospital requeriam que ela permanecesse na emergência.
Cerca de uma hora depois, Lexi foi capaz de ouvir as batidas do coração de seu bebê e se sentiu aliviada, mas, enquanto aguardava um ultrassom, começou a sentir as familiares dores de parto. Quase cinco horas depois de chegar ao hospital, Lexi deu à luz seu filho, Walter Joshua Fretz. Ela escreve:
Eu estava chorando bastante naquele momento, mas ele era perfeito. Ele estava completamente formado e tudo estava no lugar; eu podia ver o seu coração batendo em seu pequenino peito. Joshua e eu o seguramos e choramos por ele e olhamos para o nosso filho perfeito e pequenino.
A próxima decisão de Joshua parecia natural e insignificante, mas acabaria se tornando um divisor de águas e até mesmo um salva-vidas para muitas pessoas. Ele foi para o carro pegar a câmera de Lexi para tirar fotos de seu filho.
A princípio, isso não era o que Lexi queria, mas as fotos de Walter logo se espalharam por toda a Internet. Elas alcançaram mães enlutadas e ajudaram-nas na perda de seus próprios bebês, e foram usadas para ajudar mulheres a escolher a vida para seus filhos não nascidos.
Lexi recebeu muitas mensagens positivas e compartilhou algumas, incluindo as seguintes:
Acabo de encontrar as imagens de Walter... Eu estou grávida e em uma situação bem ruim esta semana. Fiz meu primeiro ultrassom na semana passada e ele é um menino também. Mas, esta semana, comecei a rezar por um aborto espontâneo ou para decidir acabar [com a gravidez], já que o seu pai está fugindo de toda a responsabilidade. Eu pedi a Deus para me dar um sinal hoje de que ficaríamos bem, ou eu iria em frente e procuraria um aborto amanhã. Algumas horas depois, eu vi o link no Facebook. Fez-me ir às lágrimas. Mas, o mais importante, me fez entender, sem nenhuma dúvida, que eu não posso fazer isso com meu filho.
Eu costumava acreditar que havia razões para justificar alguns abortos. (...) Mas, agora, olhar Walter ali, deitado no seu peito, me traz vergonha por minhas opiniões passadas e desgosto por cada mulher que decide abortar sem entender o valor da vida que traz dentro de si.
Eu sempre pensei que era uma escolha da mulher interromper uma gravidez! Novamente, falta de entendimento, pensar, ou melhor, ser levada a pensar que, nesse estágio, uma mulher poderia abortar um feto (um aglomerado de células!) Quão errada eu estava!!! Estou feliz porque você escolheu compartilhar sua história e as belas fotos desse momento tão triste da sua vida! Foi uma lição para mim!
Estou grávida há 8 semanas e por 3 delas eu fiquei em profunda agonia, sem saber se mantinha ou abortava o bebê (não estou numa boa situação para ter crianças no momento), mas você pôs a minha vida em perpectiva. Eu posso amar este bebê e "me virar", e isso basta para mim agora. Eu vou manter essa criança que estou carregando e guardá-la para a eternidade.
Essas fotos de Walter revelam a humanidade da criança não nascida. Elas provam, sem sombra de dúvidas, que se trata de uma pessoa, e não de uma partícula ou de um monte de tecido. O que levanta a questão: Por que em alguns lugares é legalmente permitido acabar com a vida de um ser humano não nascido?
"Só porque a criança na barriga da mãe não pode ser vista por nós, isso não significa que ela seja um punhado de células", escreve Lexi. "Walter estava perfeitamente formado e era muito ativo no útero. Se ele tivesse apenas mais algumas semanas, teria tido uma chance de lutar na vida. (...) Em meio a toda a nossa dor, fico feliz porque algo de bom pode sair disso. Rezo para que o Senhor continue usando as fotos de Walter para impactar a muitos."
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Desejo de matar
(Publicado originalmente no Jornal da Tarde, em 22 de Janeiro de 1998, disponível no site do professor)
Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar. Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.
Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida e consolidada num “direito”. Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em tese, coexistir com a condenação moral do ato).
Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns que possam fundamentar um desempate.
Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio.
Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.
Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido: nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.
Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista ressente e denuncia como “violência repressiva” toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a menor objeção é constrangimento intolerável.
Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si próprias.
Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar. Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.
Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida e consolidada num “direito”. Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em tese, coexistir com a condenação moral do ato).
Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns que possam fundamentar um desempate.
Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio.
Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.
Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido: nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.
Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista ressente e denuncia como “violência repressiva” toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a menor objeção é constrangimento intolerável.
Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si próprias.
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