Edição LXXVI (Terça Livre, Revista Esmeril 41 e mais)
REVISTA ESMERIL 41
- Fraternité (Vitor Marcolin)
- O sorriso mais feliz do mundo (Leônidas Pellegrini)
Esse breve ensaio foi escrito como trabalho final do curso “A Descoberta do Ensaio”, ministrado pelo professor Rodrigo Gurgel no final do segundo semestre de 2013.
“Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango.”
A simples menção do orangotango já me fez conhecer um pouco da personalidade do autor. Nota-se que, embora crítico, era bem humorado. Percebe-se também um leve tom sarcástico ao encerrar a questão, como se estivesse tratando longamente do assunto com um interlocutor teimoso. Temos que concordar que a frase poderia ser traduzida por:
O prólogo é um termo originalmente usado na tragédia grega, quando um orador enuncia o tema da peça. Um prólogo aos franceses significaria que, antes da “tragédia”, o autor tinha um recado específico para esse povo. Em um breve período de tempo, os franceses já havia experimentado uma década de Revolução, a ascensão de Robespierre, os Jacobinos, a ditadura do Comitê de Salvação Pública ou Reino de Terror (40 mil execuções), o governo do Diretório, a substituição pelo governo do Consulado, as Guerras Napoleônicas, a Primeira Restauração da Monarquia, a expulsão de Napoleão, o seu regresso para o Governo dos Cem Dias, a Segunda Restauração da Monarquia Francesa, a abdicação definitiva de Napoleão e a Revolução de Julho. Definitivamente, os franceses “começaram de novo” por muitas vezes. E o Zé, ao publicar o livro em 1930, declarou (com razão) que a humanidade vivia seu apogeu:
“Do século V até 1800, a Europa não conseguiu ter uma população superior a 180 milhões. De 1800 a 1914 ascende a mais de 460 milhões. O pulo é único na história humana.”
Zé atribuiu esse salto às novas técnicas e à democracia liberal. Mas, olhando para os lados, as coisas não estavam nada boas. O mundo se recuperava da primeira guerra quando recebeu o impacto da queda da Bolsa de Valores dos Estados Unidos, em 1929. Paralelamente, alguns já percebiam um abraço macabro formado pela águia nazifascista de um lado e o urso marxista do outro. Um no coração da Europa e o outro transbordando da Rússia em direção ao velho continente. O conflito era inevitável. Ambos utilizavam o povo como degrau para alcançar a utopia que fosse mais adequada à centralização de poder nas mãos de seus maestros. Zé olhava esse cenário e conseguia distinguir sua vítima e ao mesmo tempo o agente inconsciente: o Homem.
Embora o fenômeno visto pelo Zé já estivesse em andamento, surgiu na Alemanha algo que estaria acelerando esse processo: a Escola de Frankfurt. Uma espécie de ninho de cobras que chocavam as ideias que envenenariam muitas mentes pelo mundo.
Ainda na Europa, o húngaro Gyorgy Lukacs e o italiano Antonio Gramsci tentavam entender por que o comunismo não decolava no ocidente. Sem contato um com o outro, chegaram à mesma conclusão: existia a tal “Cultura Ocidental”, composta pela família centrada na moral judaico-cristã, no direito romano e na filosofia grega. Essa tradição impedia o marxismo de ser aceito no Ocidente. Passaram então a imaginar estratégias que pudessem utilizar para destruir essas poderosas bases. Surgiu o “Marxismo Cultural”: mas como fariam isso? Não foi simples, nem rápido. Criaram um cupim civilizacional que corroeu a ligação do homem do presente com o que melhor se produziu no passado. Esse novo homem surgiu, e o Zé chamou-o de “Massa”. Eu o chamaria de outra coisa, mas vou explicar:
Este homem influenciado dizia que a vida de obrigações e dependências era coisa do passado. Ele tinha apetites infinitos e uma preocupação primária com o seu bem-estar. Possuía opiniões sobre tudo e mesmo sobre assuntos com os quais que nunca gastara uma única caloria para entender. Era-lhe caro dar razão, e esforçava-se para impor seu pensamento. Ele possuía ideias e as considerava perfeitas. Se alguém provasse que eram estúpidas, arvorava que tê-las era um direito e que não ter razão também o era.
Embora pareça estranho diante de uma análise lógica, esse homem
que não queria dar-lhe razão nem fazia questão de tê-la, mostrava-se decidido ao impor suas opiniões. Possuía teorias, mas sofria pela incapacidade de expressá-las. A forma de demonstrar era praticando-as. Pacificamente se ninguém se opusesse, e com violência caso tentassem impedi-lo. Esse homem vivia cercado pelas benesses da evolução humana, conseguidas a muito custo pelos seus antepassados, mas se interessava cada vez menos por seus princípios, ao ponto de não mais percebê-los. Usava-a como se fizesse parte da natureza e acreditava que possuía o direito de tê-las. Era um homem do seu tempo. Era o praticante integral do Carpe Diem (Viva o hoje). Encantava-se diante do espelho.
O homem massa, por vezes, não é um ignorante. Pode ser uma pessoa culta - tecnicamente falando - mas que possui uma completa ignorância acerca dos outros elementos que o cercam. O Zé descreve-o novamente no capítulo “Barbárie da especialização”, quando afirma que o homem das ciências de então (1930!) é o protótipo do homem-massa. Cada vez mais se especializa e estreita seu conhecimento em uma única direção. Progressivamente perde cultura. Em contraposição, a padronização da pesquisa e os avanços tecnológicos requerem pessoas cada vez menos especializadas. Eis o desastre da combinação do estreito com o raso, formando o sábio ignorante:
“(...)um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda arrogância de quem em seu campo especial é um sábio (…) Quem quiser poderá observar a estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os “homens da ciência” e é claro, além deles, médicos, engenheiros, economistas, professores etc.”.
Os homens que realmente desejam evoluir sempre norteiam sua vida por algo superior. E ao alcançá-lo, sabe que só o fez por estar sobre os ombros de gigantes. Olhando à sua volta, descobre que poucos estão presentes no cume. E os que lá chegaram, representam uma minoria excepcional. A humanidade sempre encontrou seus avanços em todas as áreas das ciências e da cultura, nesses pequenos grupos. Eles estão sempre à frente enquanto outros seguem girando a roda do mundo. É a ordem natural das coisas. Quando a lógica se inverte e a massa desejosa resolve conduzir seu próprio rumo, vê-se o abandono dos deveres e a locupletação coletiva dos direitos no limite das possibilidades. Diante de qualquer dificuldade, exige que uma força superior o ajude e, olhando para cima, só encontra a figura do Estado, que assume imediatamente e se encarrega de resolvê-la agigantando-se. É a maior ameaça a civilização:
“…a estatização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado”.
Em sua luta por uma quantidade máxima de direitos, esse homem esquece que todo direito seu pressupõe um dever de alguém, a fim de garantir que essas obrigações sejam cumpridas. O detentor dos
meios de imposição de deveres e fornecimentos de direitos acaba por possuir um poder maior que a soma dos elementos daquela sociedade e cresce indefinidamente seguindo sua própria vocação. A liberdade passa a ser a moeda com que se compra abrigo. Vendo esse Leviatã agigantar-se, esse homem aspira a fazer parte dele. Começa dele se servindo e termina por servi-lo. Ao optar por servir a um senhor ao invés de um conjunto superior de valores, marcha de volta à caverna, para a tristeza de Platão.
“O homem-massa carece simplesmente de moral, que é sempre, por essência, um sentimento de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação”.
Ele é desprovido de valores. Acredita que todo homem tem um preço e calcula o próprio. Seu gosto cultural privilegia o banal em detrimento ao artístico.
Com o tempo, esse homem aprendeu que se juntar a seus iguais é conseguir mais. Não importam os meios. Decoram frases de efeitos, gritam por causas ilógicas e atendem ao chamado de “uni-vos”. Tal arranjo é eficiente por algum tempo, mas os enfraquece por despi-los do individualismo necessário para formação de opinião própria divergente da que lhe é imposta. Adere a um coletivo. Inculto e não tendo a mínima noção do valor das coisas do passado, esse homem está sempre disposto a apoiar revoluções que aparecem para jogar tudo fora e criar o novo. Desconsidera o que foi esculpido com o formão do trabalho e o martelo da razão. Tolo, pensa que sua unidade rasteira é algo que lhe fortalece. Rui tal qual um arranjo de dominós, que de propriedades idênticas e dispostos muito próximos, caem um após o outro, sem capacidade de reagir individualmente a qualquer movimento contrário em sua direção. Só lhe resta tombar.
O “ilustre desconhecido” filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, ao falar sobre as origens da decadência grega, toca novamente no cerne da questão:
“Quando a nobreza de Atenas perdeu, e ascendeu a democracia, a luta pelo poder foi imensa. Como a juventude aspirava ao poder, tinha que se preparar, e os meios para isso eram a oratória e a eloquência, que possibilitavam uma argumentação para os debates. Sábios de todas as partes do mundo grego reuniam-se em Atenas, onde encontraram um mercado ávido. A juventude pagava à peso de ouro suas aulas, no intuito de poder dispor de uma argumentação poderosa ante os adversários. A consequência foi a queda da juventude, como decai em todos os momentos de agitação política, perdendo suas ligações com a cultura superior, tornando-se apenas uma massa agitada, que vive de palavras de ordem.”
Se o Zé, analisando o seu presente à época, entregou-nos a carteira de identidade do “homem massa”, e o Mário, analisando o passado, entregou-nos sua certidão de nascimento, isso nos leva a outro ponto:
Seria ele uma constante universal que surge sempre na crista dos ciclos culturais?
Seria ele uma anomalia natural?
“Toda ordem tende ao caos”
“…porém fica a pergunta: como conseguem se eles estão errados, deteriorar o que está certo? Essa é a grande desgraça da humanidade: o erro tem mais facilidade de propagar-se do que a verdade. É mais
fácil propagar-se uma infâmia do que uma boa ideia. É mais fácil destruir do que construir. Essa é uma das condições humanas e uma das nossas grandes impossibilidades.”
Agora, precisamos salvá-lo!
O homem?
Não, esse já está perdido. Eu falo do símio. Voltemos à frase que iniciou esse texto:
“Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango.”
Infelizmente, terei que discordar do autor. Creio que ele errou o bicho, pois o símio não faz isso. Quando o Orang, (que na língua Malaka significa “pessoa”) tem contato pela primeira vez com uma banana, creio eu, nunca o veremos comendo a casca enquanto joga o fruto fora. Alguma memória genética o ajudará, ou ele observará os mais antigos de sua espécie. Geralmente sua mãe.
Carl Sagan, em sua obra Cosmos, ensinou-nos que, para sobreviver, os seres vivos fazem coisas inconscientes que já estão escritas nos seus genes. Eles não sabem como, mas digerem o que comem, reproduzem-se, correm, atacam, fogem. Alguns conseguem até prender a respiração. Essa inteligência está no DNA, que possui a função de armazenar e copiar informações. São escritas em um idioma com milhões de anos de idade. O idioma da vida.
Todos os organismos do nosso planeta possuem sua biblioteca particular. Quanto mais livros, mais capazes. Um vírus precisa do equivalente a uma simples página de instruções para se reproduzir e infectar. Uma bactéria já usa 100 páginas de informações. Uma simples ameba possui cerca de 4.000 páginas. O ser humano possui algo em torno de 1.000 livros em cada uma das células do corpo. O nosso corpo inconsciente é muito mais esperto que o nosso corpo consciente. Mas veja, essa enciclopédia é escrita com o lápis do tempo evolutivo. Se algo mudar muito rapidamente, não existe tempo para adaptação. Para isso temos o cérebro.
O cérebro humano desenvolveu-se de dentro para fora. A parte mais antiga, o tronco cerebral, possui as rotinas básicas da vida. Cobrindo esse tronco está o complexo “R” (de réptil), que é o lugar da agressão, do ritual, da territorialidade, do sexo e das hierarquias sociais. À sua volta está a parte límbica, desenvolvida antes do surgimento dos macacos. Lá está a fonte das emoções. Mais acima, na parte superior, está o córtex cerebral, crescendo nos primatas e por milhões de anos. Ali estão a análise crítica, as ideias, as inspirações, a música, a matemática, a arte e a ciência. Aqui é o território de 100 bilhões de neurônios com suas 100 trilhões de conexões. Daria algo como vinte e um milhões de livros. A vocação para aprender foi a chave da nossa evolução. Mas isso não era suficiente, pois mesmo o nosso magnífico cérebro possuía limitações. Chegou um momento em que precisávamos saber mais do que a nossa memória poderia guardar. Então nós aprendemos a armazenar informações fora do corpo.
Inventamos a escrita.
Ela foi esculpida na pedra, pintada na seda, bambu, raspada em cera, casca de árvore, couro e até em papel. Até que na China, entre os séculos dois e seis, o papel encontrou a tinta e blocos de madeira esculpidos, permitindo muitas cópias de um mesmo trabalho. Mais de 1.000 anos depois, um alemão de nome Gutenberg inventou algo similar, embora muito superior: A prensa, que permitiu em pouco tempo que o ocidente saltasse de alguns milhares de livros escritos à mão, para milhões de livros impressos. O conhecimento ficou acessível a qualquer um que soubesse ler. Já era possível, e em larga escala, conectar-se com as maiores mentes e os melhores professores de todos os tempos. Fez-se luz.
Os livros impressos ampliaram os repositórios do conhecimento de nossa espécie. A capacidade de aprender com o passado expandiu nosso conhecimento de maneira nunca imaginada. O ser humano não precisava mais começar de novo a cada dia, tal como um animal, que por não ter a mesma capacidade, acaba por fazê-lo indefinidamente. Um jacaré para sobreviver amanhã, terá que fazer as mesmas coisas que ontem e hoje, pois lhe resta apenas o tronco cerebral, o instinto, o nosso complexo “R”.
A busca da sabedoria atemporal é antes de tudo um exercício de humildade. O homem massa distancia-se da sabedoria de sua espécie e aproxima-se do animal. A memória dos erros, disponível para o ser humano, possui grande valor. Olhar o passado e absorver a sabedoria dos que já trilharam a mesma estrada pela qual você passará é o que nos diferencia. Preservamos, assim, nossa língua, tradições e a própria evolução consciente.
Romper com o passado é tornar o homem um fraco, um simples, um animal. É aspirar a descer e plagiar um Jacaré, pois o Macaco não faz isso.
De fato, o Burro quando atenta contra a própria existência, é digno de sarcasmo.
Obrigado Zé, por me fazer compreender o Mário.
Obrigado Gurgel, por me impor o tema.
Obrigado Olavo, por me salvar de repousar miserável no meu túmulo.
(por Allan dos Santos - 11/03/23)
Assim diz a diretriz de junho de 1921 do partido comunista em sua primeira linha: “A organização do partido deve se adaptar às condições e aos objetivos de sua atividade.”
É uma estrutura sem princípios, valores, crenças ou raizes. Um movimento de transformação que possui a contradição como parte essencial de suas ações, desde que o objetivo seja alcançado. A fidelidade ao texto só indica uma condição sine qua non: a direção é dada pelo partido. Sempre.
Se ontem eles acusavam a todos os seus adversários de usar a máquina pública, desde que estejam na direção da ação revolucionária, eles poderão nomear qualquer pessoa para qualquer cargo.
A esposa de Marcelo Freixo está na diretoria da Secretaria de Comunicação Social (SECOM) do atual regime desde o começo do corrente ano. Pelo menos 12 esposas dos comunistas foram beneficiadas com o bolsa-cargo desde que Lula assaltou o poder federal com a fraude.
A TV Brasil, emissora pública do governo federal, agora conta com Antonia Pellegrino, esposa de Marcelo Freixo, como diretora de conteúdo. Antônia foi escolhida para o cargo ainda durante o período de transição e, embora a auto-proclamada primeira-dama Janja da Silva tenha manifestado simpatia por ela, a decisão final do teatro estava nas mãos do ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta.
Na semana passada, Antonia escalou o ex-jornalista da Globo Marcos Uchôa para integrar sua equipe na TV Brasil. Freixo não foi eleito para o cargo de governador do Rio de Janeiro, mas não ficou de fora. Atualmente dirige a Embratur no regime Lula. O casal não tem motivos para inveja: os dois estão mamando nas tetas do Narco-Estado tupiniquim.
A direita ficou com nojinho de fazer bom uso da EBC, SECOM e TV Brasil. Já os comunistas, não. A direita não precisava acariciar a conta bancária dos políticos, claro, mas fica o questionamento: é realmente vantajoso bater no peito e dizer que o governo anterior economizou quando poderia ter utilizado esses meios de ação e conscientizar a população? A direita polonesa não teve nojinho. Usou e usa todas as estatais de comunicação para falar contra o aborto, desmascarar os globalistas etc. Isso para não falar da BBC do Reino Unido que é uma estatal, assim como a americana NPR.
Por que a máxima revolucionária parece tão esquecida?
Observemos, leitor, em nosso cotidiano, na escola, no trabalho, na faculdade, na mídia, na cultura, na tevê, na internet e… até na Igreja (pois eu já vi), todos gritam, esbravejam a plenos pulmões: “Liberdade!” “Igualdade!”. Mas ninguém milita realmente em prol da Fraternidade. E por quê? Vejamos alguns dos seus sinônimos a fim de encontrarmos uma resposta convincente: irmandade, afinidade, amizade, atração, inclinação, irmanação, vínculo, simpatia, afeto, identidade… amor. Percebe? Os elementos que implicam a Fraternidade demandam consenso. No âmbito social, leitor, as coisas devem ser de tal forma arranjadas de maneira que tudo esteja bom para mim e para você. E por que estaria bom só para você ou só para mim?
A Fraternidade caiu em desuso porque este elemento de reciprocidade inerente à sua realidade não serve às demandas revolucionárias, às necessidades de uma conjuntura na qual as relações sociais sejam determinadas por valores diversos daqueles estabelecidos via transcendente. Não é possível expor, num artigo, a coisa com maior clareza; talvez só numa narrativa ficcional, na qual a realidade não seja explicada, mas mostrada simplesmente. São os vínculos com o transcendente, os vínculos com a religião que dão o substrato das relações sociais genuínas. Você, caro leitor, não pode, genuinamente, jurar que fará o bem, que honrará as autoridades, que não roubará, não cobiçará, não assassinará quem quer que seja perante uma autoridade… estatal. Faltar-te-á, com a licença da mesóclise, convicção, sinceridade.
Um arrogante burocrata estatal, por força de um imperativo ontológico, jamais será autoridade suficiente para julgar a qualidade do amor ao próximo praticado por você, leitor atento. A força para organizar o caos vem da religião, como a História do nascimento e morte das grandes civilizações atesta. Aliás, a etimologia do termo traz em si a síntese de toda explicação: religar. Daí que o restabelecimento dos nossos vínculos com o transcendente seja tão diabolicamente combatido pela narrativa revolucionária. Mas não se iluda, respeitável leitor: Liberdade e Igualdade sem responsabilidade é a antessala do inferno, onde não pode haver nenhum resquício da incômoda Fraternidade. Daí que amar ao próximo como a si mesmo seja a mais reacionária de todas as decisões.
***
Baseado no martírio de São Loureço de Huesca
Escoltado por soldados, com uma multidão hostil de ambos os lados a insultá-lo e a lhe jogar verduras, ovos podres e pedras, Lourenço seguia tranquilo pelas ruas de Roma. Na verdade, ia mesmo alegre, um leve sorriso podia ser percebido em seu semblante. Não havia maneira mais feliz de terminar a vida neste mundo do que morrendo por fidelidade a Jesus Cristo, e ele sabia disso. Seu olhos, inchados e vermelhos de espancamento, sal e vinagre, não viam soldados nem pagãos furiosos, nada enxergavam além do Céu, já bastante próximo.Quando chegaram ao local da execução, e ele viu como seria seu martírio – o imperador lhe reservara uma pena exemplar, ser assado em uma grelha gigante feita especialmente para aquela ocisão – seu sorriso alargou-se: “Então, é assim que vão me levar ao Céu? Pelas chamas?”, pensou. “Que seja! Só peço, Senhor, que minha morte venha a ser ocasião de salvação de muitas almas. Entrego agora meu espírito ao Senhor, e peço, sobretudo, por meus algozes. De minha parte, eles estão perdoados.”
Depuseram-no então sobre a grelha, deitado de lado e acorrentado, como uma grande carne de caça, e acenderam a fogueira. A multidão em volta olhava sequiosa. Aqui e ali, cristãos encapuzados rezavam em silêncio por ele. Os soldados, bêbados, gargalhavam. Mas um deles, de repente recuperando a sobriedade, percebeu que o prisioneiro sorria, e à larga. As chamas já começavam a assá-lo, mas o homem parecia não sentir, e apenas sorria. De sua parte, Lourenço de fato nada sentia além se uma alegria intensa, profunda, que ia aumentando conforme ele via, entre a multidão e os soldados, olhares de incredulidade e corações que iam da confusão para a contrição. Suas preces haviam sido atendidas.
O mártir, então, começou a rir, e depois gargalhar, pois a alegria não cabia mais no silêncio. E conforme ele gargalhava, mais e mais pessoas iam se escandalizando, e o escândalo transformava-se em verdadeira conversão, e ele ria ainda mais. E quando viu que o chefe da guarda ordenava aos soldados que aumentassem o fogo, falou-lhe, enquanto tomava fôlego entre uma gargalhada e outra:
– Ei, chefe, olha só: este lado já está bem chamuscado, vai tostar. Peças aos rapazes que me virem, para que eu asse por igual!
A decisão do líder sandinista Daniel Ortega segue-se a um recente discurso seu, chamando a Igreja Católica de “máfia”, e também à condenação completamente arbitrária de Dom Rolando Álvarez, bispo de Matagalpa, a 26 anos de prisão por suposta “traição à pátria”.
Tais restrições à liberdade religiosa são uma constante nos regimes comunistas. Basta pensar na China, onde os cristãos ajudados pelo governo são obrigados a trocar as imagens de Cristo em suas casas por outras de Xi Jinping; ou na Coreia do Norte, onde o ditador Kim Jong Un já substituiu uma vez o Natal pela festa da própria avó.
Só que, muito antes do comunismo — e da própria religião cristã —, vale lembrar que a festa judaica da Páscoa nasceu justamente neste contexto: de um governante iníquo, ditador, que queria impedir o povo de Deus de adorá-lo publicamente.
Assim nasceu a Páscoa
Depois que José, o filho de Israel vendido por seus irmãos, trouxe-os todos para junto de si, no Egito, os judeus fixaram residência no lugar e não pararam de se multiplicar. Vendo que cresciam e os ultrapassavam em número, os egípcios começaram a persegui-los e escravizá-los. Foi então que Deus suscitou Moisés para libertar o seu povo da opressão. E, quando lhe apareceu na sarça ardente, pedindo que fosse falar com o faraó, para deixar os israelitas irem ao deserto, a justificativa que Deus mandou Moisés usar com o rei do Egito foi esta: “O Senhor, Deus dos hebreus, veio ao nosso encontro. Por isso, deixa-nos agora caminhar três dias deserto adentro, a fim de oferecer sacrifícios ao Senhor, nosso Deus” (Ex 3, 18).
Veja: ao longo de todo o diálogo de Moisés com Deus, este fala que vai tirar seu povo da servidão, e que o conduzirá a uma terra onde emana leite e mel. Mas o documento “oficial” do pedido ao faraó, por assim dizer, usa como justificativa nada menos que a liberdade de prestar culto a Deus: “Tu lhe dirás: ‘Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito. Por isso, eu te ordeno que deixes ir o meu filho para servir-me” (Ex 4, 22-23).
Moisés e Aarão obedecem à ordem de Deus e dizem isso mesmo ao faraó: “Assim fala o Senhor, Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que celebre uma festa para mim no deserto” (Ex 5, 1).
Todos conhecemos o resto da história. O faraó não dá ouvidos a Moisés e Deus manda, então, as famosas “dez pragas do Egito”, culminando a última na passagem do anjo exterminador pelas casas dos egípcios, matando-lhes todos os primogênitos; só os lares dos israelitas são preservados: o anjo do Senhor vê nos umbrais de suas portas o sangue do cordeiro e poupa-os da morte.
É a primeira Páscoa — e o termo significa isto mesmo: passagem, em referência à praga que chegava às portas dos israelitas, mas passava adiante.
“Não só de pão vive o homem”
Também o que se seguiu à instituição da Páscoa tem muito a ver com o que estão vivendo hoje os nicaraguanos.
Após o extermínio dos primogênitos, o povo de Deus finalmente consegue escapar às mãos do faraó. É aí que atravessa a pé enxuto o Mar Vermelho e chega ao deserto. Perambula então quarenta anos, e só mais tarde é que entra na Terra Prometida. Mas por quê?
Porque precisava aprender, via ardua, que “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4) — uma frase que Jesus usa contra o tentador no deserto, mas que é de Moisés e se encontra no livro do Deuteronômio, como chave explicativa para todo o sofrimento que o povo de Israel vive em sua “quaresma”: “Ele te humilhou, te fez passar fome, te deu de comer o maná, que nem tu, nem teus pais conheciam, para te mostrar que não só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3).
O contexto dessa lição de Moisés é bem fácil de entender: depois que foi liberto da escravidão, o povo de Israel só sabia reclamar de saudades das cebolas do Egito. Deus lhes fez chover maná e caírem sobre eles codornizes… Ou seja, não os desamparou. Mas eles não gostavam daquele alimento especial e sentiam falta da época em que viviam no Egito — porque, por escravos que fossem, pelo menos eles podiam “encher a barriga” com o que lhes agradava.
Então Deus lhes ensinou o que realmente importa — e o livro da Sabedoria repete de forma poética as palavras do patriarca Moisés:
E assim teus filhos queridos aprenderam, Senhor,que não é a produção de frutos que alimenta as pessoas,mas a tua palavra, que sustenta os que creem em ti.Aquilo que pelo fogo não podia ser consumido,imediatamente, aquecido por um mínimo raio de sol, se desfazia.Isto, para que ficasse evidente que é precisoantecipar-se ao sol para dar-te graçase, desde o nascer da luz, prestar-te adoração.Pois a esperança do ingrato se fundirá como a geada do invernoe se perderá como água que escorre (Sb 16, 26-29).
Barriga cheia ou prato vazio?
À luz do que se está passando na Nicarágua, o que podemos dizer? Que continua a ser esta a grande tentação do homem: viver na escravidão, mas “de barriga cheia”, ou servir a Deus ainda que à custa de um “prato vazio” (representando aqui todo tipo possível de sacrifício).
Não que não seja possível adorar a Deus e ter comida na mesa, ao mesmo tempo; e a história do Holodomor, na Ucrânia, também mostra que se pode muito bem ficar sem os dois. Mas precisamos entender que existe sempre uma prioridade máxima, e não deve haver nenhuma dúvida de qual seja ela. Pois, se o nosso bem-estar e conforto materiais são mais importantes que Deus, então não só não somos dignos do Céu; tampouco podemos nos chamar homens — pois ignoramos o que há de mais nobre e elevado em nós mesmos, pensando que nosso estômago vem primeiro que nossa alma.
Em tantos lugares do mundo, por exemplo, onde a Rússia espalhou os seus erros — como previsto por Nossa Senhora de Fátima —, quantos não se entregaram alegremente aos inimigos de Deus, por vias “democráticas”, seduzidos justamente por promessas baixas de dar carne a toda uma população ou erradicar-lhe a fome? E a que preço se venderam? Ao preço de sua santa fé, de seus valores mais íntimos, de sua liberdade de culto e de consciência. Ao preço de bispos, encarcerados simplesmente por ser católicos, ou de vidas inocentes, ceifadas antes mesmo de virem à luz.
É triste dizê-lo, mas, centenas de anos depois, nós nos esquecemos das lições de Moisés e de Jesus no deserto. Para nós, aparentemente, é só de pão mesmo que vive o homem.
“Ah — alguém poderá dizer —, mas Jesus alimentou as multidões quando multiplicou os pães e os peixes!” Sim, claro, mas será que era só desse pão, terrestre, passageiro e perecedouro, que Jesus queria que os Apóstolos alimentassem as multidões quando disse a eles: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16)? Ou não falou Ele expressamente, no início do discurso do pão da vida: “Trabalhai não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece para a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará” (Jo 6, 27)?
O que está acontecendo na Nicarágua neste ano de 2023 — e que tem acontecido em todos os regimes anticristãos das últimas décadas — deve soar mais uma vez o alerta para nós todos: Não só de pão vive o homem! Os porcos têm suas lavagens e os urubus, suas carniças. Mas eles não têm Semana Santa. Os bichos não saem às ruas em procissão para cantar hosanas ao filho de Davi, nem para bater matracas de luto pela morte do Filho de Deus. A fé é própria do homem, muito mais que o alimento para o estômago (cf. 1Cor 6, 13).
E se não é para isto que existimos — para crer no Deus verdadeiro e louvá-lo com nossa vida; se não nos importamos em ter tolhida nossa liberdade mais fundamental — a de prestar culto a Ele —, então é porque já descemos há muito tempo ao nível dos animais; e pior: nem nos incomodamos com isso.
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