Edição LXVIII (Terça Livre, Revista Esmeril 37, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 37
- As massas e o ópio dos intelectuais (Nati Jaremko)
- A hóstia (Leônidas Pellegrini)
Aos 13 anos, habitando a fazenda Lagoa de Cima, que pertencia ao seu pai, Zé assiste ao duro
trabalho e aos castigos impostos aos escravos. Ele sofria. Pouco tempo depois,
em outra ocasião, Zé, como forma de protesto, atirou-se na escada e partiu a
cabeça.
Noutra, atacou um negro-velho e chegou a feri-lo. O Zé não suportava ver aquilo sendo feito com aquelas pessoas da sua cor. Seu pai repreendeu-o
gravemente. O Zé nunca mais esqueceu aquele dia.
No ano seguinte, Zé chegava à capital. Chegava à corte. Aos 14 anos, queria um trabalho. Entrou pelo Hospital da Misericórdia e
apresentou-se ao diretor, que se surpreendeu com o desembaraço do garoto e a vontade de fazer algo. Colocou-lhe como
aprendiz extranumerário da farmácia da Santa Casa. Aprendeu os serviços do laboratório.
Do hospital, ganhava dois mil réis por mês. A mesada que o pai enviava era de dezesseis mil réis. Oito vezes mais que o salário. Ele deixou o hospital e seu pai cortou a mesada. Um
conhecido da família, lá de Campos, Conselheiro Albino de Avarenga, conseguiu-lhe um
emprego na Casa de Saúde do Dr. Batista dos Santos. Nessa mesma época, e estimulado pelo doutor, Zé começa a frequentar o
externato do Dr. João Pedro de Aquino, seu futuro mestre e amigo. Muitos diziam que Aquino foi um Santo da Pedagogia
brasileira. Educou gratuitamente incontáveis alunos. Era meigo, puro e generoso. Graças a esse apoio inestimável, Zé estudou os preparatórios de farmácia e os tantos outros exigidos para o curso médico.
Zé morava numa república. Isto é, em uma residência coletiva de estudantes. Entrou para a escola boa e cara. Recebia ajuda de vinte mil réis da beneficência e completava o restante do valor com as aulas primárias que ministrava. Não lhe faltavam alunos.
Em 1874, Zé conseguiu o diploma de farmacêutico. Mas não tinha posses para abrir um negócio e não queria alugar seu diploma
para ninguém. O salário de um farmacêutico não passava de 40 mil réis mensais.
Para alegria do Zé, um amigo do externato, de nome João Rodrigues Vila Nova, convidou-o para passar um dia em sua chácara, em São Cristóvão. Todos simpatizaram com o Zé. Insistiram para que ele morasse ali. O colega, sua mãe e o padrasto, capitão Emiliano Rosa de Sena. Todos insistiram. O capitão propôs-lhe que permanecesse então como professor de seus filhos, Maria (Bibi), Rosália, Adélia, Ernesto e o caçulinha Cévola. Depois de algum tempo, ele conseguiu uma casa pertinho da chácara após um arranjo feito pela bondosa esposa do Capitão, dona Henriqueta.
Zé seguiu a vida.
Em 1877, seguindo seu espírito, Zé começa a participar do Clube Republicano. Debatia com Quintino Bocaiúva, Souza Caldas, Lopes Trovão.
Zé aproximou-se da política, das questões sociais. No mesmo ano, começou a trabalhar na Gazeta de Notícias. Escrevia dois artigos por semana. O primeiro, em verso rimado. Em pouco tempo, redigia a “Semana Parlamentar”, relatando os debates políticos. Dois anos depois, começou a fazer notas de rodapé na Gazeta, onde sistematicamente falava contra a escravidão.
O Zé era realmente irresistível. Venceu a opinião do Capitão Emiliano, que não queria gente de cor na família, e casou-se com sua filha Bibi. Tiveram cinco filhos. Mas, para o nosso amigo, a imprensa já não lhe comportava. Vocacionado pela genética do pai, era orador sem igual. Um gênio das palavras que transbordava pelo limitado papel do jornal.
Em 1880, chegava no Rio o consagrado Maestro Carlos Gomes. Foi uma grande festa. O Jornal
do Comércio noticiou que Zé e seu amigo Paula Nei fizeram uma vaquinha com as
pessoas que ainda estavam a bordo do navio, a quantia de 100 mil réis, para que somados aos 430 mil réis já recolhidos do povo no porto, comprassem a liberdade de um escravo de nome Tito, que valia 800 mil réis. A carta de alforria seria entregue pelo Maestro na noite da apresentação.
No mesmo ano, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Em vários pontos do país, surgem organizações
similares.
Zé deixou a Gazeta de Notícias, e seu sogro, o capitão, ajudou-lhe a comprar o “A Gazeta da Tarde”, em 1881. Através de suas colunas, Zé desfilava argumentos mis, e no mais belo português. Sua pena bailava sem limites protestando. Seus discursos e comícios eram muito disputados. A oratória perfeita conquistava corações a cada evento. A capital rendia-se ao Zé.
No
Ceará, tremiam os senhores de escravos que não estavam desinformados. Procuravam vender seus cativos para outras províncias. Eram sempre transportados por Jangadas.
Os marítimos de fortaleza eram dirigidos por um tal Francisco José do Nascimento, o mestre Chico. O Dragão do Mar, percebendo o ardil, proibiu o transporte e gritou que nas jangadas não mais entrariam cativos.
Em 1882, por lá, desembarcaram Zé e o amigo Paula Nei, recebidos festivamente pelo Dragão do Mar. O Berço de José de Alencar não economizou em homenagens aos dois amigos. Zé nomeou a cidade como “Terra da Luz”, e a cidade nomeou-o como “Cidadão Cearense”.
Os amigos seguiram viagem, e a Terra da Luz seguiu em campanha. Em 1º de janeiro de 1883, a cidade cearense de Acarape, que hoje se
chama Redenção, liberta todos os escravos do município.
Em 1883 é criada a Confederação Abolicionista no Rio de janeiro, reunindo a nata dos pensadores que reuniam esforços para o fim daquela chaga. Seu símbolo era uma camélia, inspirado no quilombo do Leblon, que, auxiliado pela princesa Isabel, produzia essa que é considerada a mais linda das flores.
Escrevendo ou discursando, ele era o maior protagonista da causa. Levava ao delírio multidões que se acotovelavam para ouvi-lo falar. A cada dia aumentava o número de simpatizantes.
Os Gigantes André Rebouças e Aristides Lobo escreveram, juntamente com o Zé, o Manifesto da Confederação Abolicionista, pedindo aos legisladores que acabassem com
a escravidão.
Em 26
de agosto de 1883, em sessão solene, foi lido o Manifesto no Teatro Dom Pedro, na rua da Guarda Velha, atual rua 13 de maio.
O povo do Rio de Janeiro acompanhava a campanha de perto. Era crescente o número de adeptos, principalmente intelectuais.
A confederação realizava catequizações em plena rua, conversando com donos de escravos. A maioria lhes atendia.
Começaram na Rua Uruguaiana. Logo a seguir, na Travessa do Ouvidor, conseguiram alforriar todos os servos. Na libertação dos negros no Largo do São Francisco, houve solenidade cívica presidida pelo Diretor da Escola Politécnica Miguel Arcanjo Galvão. Participaram Getúlio das Neves, André Rebouças, Álvaro de Oliveira, Paulo de Frontin e Enes de Sousa. Em meio à festa, foram colocadas placas mudando o nome do Largo de São Francisco para Praça da Liberdade,
que foram logo retiradas pelo Governo.
Em 25 de março de 1884, o Ceará extingue o cativeiro em seu território. Nosso amigo recebe a notícia em Paris e organiza um banquete com os principais jornalistas, políticos e intelectuais da capital francesa. Vitor Hugo, enfermo, não pôde comparecer, mas enviou carta de exaltação à magnânima atitude cearense.
A convite dos abolicionistas da corte no Rio de Janeiro, Dragão do Mar embarca rumo à cidade e levava consigo uma jangada que é exibida nas ruas da cidade sob aplausos do cortejo de mais de vinte mil pessoas. Logo depois, a jangada foi doada ao Museu Nacional no Campo de Santana, onde hoje funciona o Arquivo Nacional. Mais tarde, a jangada foi enviada para o Arsenal da Marinha e desapareceu.
Em
1885, foi recebido como um herói em sua cidade natal, Campos dos Goytacazes. Foi visitar sua mãezinha e levou-a consigo para o Rio de Janeiro. Ela faleceu no fim do ano, e
a sua morte foi uma prova da grandiosidade de seu filho. Um ministro do Império, Rui Barbosa, e dois futuros presidentes da República estiveram presentes no enterro de uma escrava africana. Esse ato, por si só, prova que no Brasil nunca houve segregação como hoje nos fazem crer livros e novelas.
No ano seguinte, em 1886, nosso amigo entrou para a política, sendo eleito vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Levou o tema da escravidão para as discussões no Parlamento.
Em 1887, saiu da “Gazeta da Tarde” para fundar o “A Cidade do Rio”, onde deferiu os mais fortes golpes contra a escravidão. Foi nesse jornal que nosso amigo anunciou o 13
de maio de 1888, a tão esperada abolição.
Logo
após a assinatura da maior de nossas leis, a Áurea, com as ruas tomadas pela comemoração e sob uma chuva de pétalas de camélias caindo sobre todos, nosso amigo aproximou-se da Princesa Isabel, ficou de joelhos e beijou-lhe as mãos.
Agora, muitos poderosos, sedentos pela indenização que não receberiam, começaram a apoiar a forma republicana de governo. Queriam algo menos hermético. Queriam participar do poder e, por ironia do destino, o jornal republicano "A Cidade do Rio" passou a ser identificado pelo povo como defensores da monarquia. Seu dono era um “isabelista” e criador da Guarda Negra, um grupo de capoeiristas que atuavam em defesa da princesa e contra comícios republicanos.
Foi proclamada a República contra a vontade popular, contra as nossas fundações, contra a tradição, contra as leis, contra tudo e a favor de pequenos grupos.
Nosso
amigo era um simpatizante da forma como a república havia se estabelecido em outros países. Ele foi pessoalmente na Câmara Municipal e hasteou a bandeira provisória em 15 de novembro de 1889.
Os conspiradores mentiram para o Exército, e esse tomou a frente do golpe. Tolos acharam que entregariam o poder.
Em 1892, nosso amigo importou da França o primeiro automóvel brasileiro. Era movido a vapor e espantava os pedestres com o som da nova besta fera de aço. Ele estava radiante. Publicou em seu jornal um manifesto de um dos chefes da Revolta da Armada. Ele, que antes gozava de liberdade em sua pena, entrou na mira do sanguinário Floriano Peixoto. Foi detido e deportado para Cucuí, no alto rio Negro, no estado do Amazonas. Para o meio da floresta.
Retornou silenciosamente em 1893. Mas, incrivelmente, o Exército brasileiro estava em
guerra contra a Marinha do Brasil em plena revolta da armada. Seu jornal, “A Cidade do Rio”, estava com sua circulação suspensa. Sem ter como ganhar dinheiro, foi residir no subúrbio, no bairro de Inhaúma.
Sem liberdade para escrever, focou sua atenção no moderno invento de Santos Dumont. Construiu um dirigível de 45 metros, o “Santa Cruz”, que não voou.
Num discurso em homenagem a Santos Dumont, começou a tossir e cuspir sangue, sinais de uma tuberculose pulmonar.
Faleceu pouco depois, aos 51 anos de idade.
Perdemos um gigante, o maior dos abolicionistas:.
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A HISTÓRIA CONHECE MUITOS PERÍODOS DE TEMPOS SOMBRIOS, EM QUE O ÂMBITO PÚBLICO SE OBSCURECEU E O MUNDO SE TORNOU TÃO DÚBIO QUE AS PESSOAS DEIXARAM DE PEDIR QUALQUER COISA À POLÍTICA ALÉM DE QUE MOSTRE A DEVIDA CONSIDERAÇÃO PELOS SEUS INTERESSES VITAIS E LIBERDADE PESSOAL.
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombriosOs intelectuais adquiriram um papel central ao longo da estruturação das democracias liberais. Se antes serviam às elites políticas tradicionais, passam agora a liderar um processo de formação de imaginário ao longo do qual a abstração “povo” substitui simbolicamente lideranças hierárquicas. O monopólio do poder é mantido, mas escondido sob a falsa concepção de que as decisões vieram de um consenso popular e da participação geral nos mecanismos de atribuição de função.
A “vontade do povo” é meio para obtenção de poder arbitrário, para manutenção de privilégios, e não o fim último da atual política. A intelligentsia se arroga a posição de preceptora das massas, de guardiã de sofisticadas ferramentas de observação da realidade, e simultaneamente impõe limitações aos processos honestos de construção do conhecimento, define regras que obedecem a critérios burocráticos e não de excelência. Não dialogam com o povo, mas sim com a imagem fetichizada que têm dele. Trocando em miúdos: apresentam-se como referência no conhecimento da verdade e como representantes dos interesses populares enquanto validam um projeto de poder específico e que marginaliza os que não partilham de suas ideias.
Nesse processo, conceitos importantes para a compreensão do cenário político-social perdem seu sentido perene, as leis naturais, as regras de convívio que resistiram às provações do tempo, são substituídas por imposições circunstanciais e que refletem os arroubos de autoridade daquelas elites. A desvalorização da essência das coisas faz crescer, no mundo das ideias, um fetiche estético.
Um signo linguístico passa a ter mais importância pelo que parece explicar, do que pela realidade que ele de fato descreve. Defende-se, por exemplo, a referência momentânea de justiça, aquilo que a classe falante do momento definiu como tal, e não o que de fato é justo. A liberdade passa a ser associada à formação de um ambiente favorável ao que é desejado pela elite intelectual, ao que na visão dela traz prazer e satisfação, ainda que tenha que ser imposto, e não ao seu significado tradicional e lógico que associa o conceito a espaços livres de interferência.
Em momentos de grande instabilidade institucional ou de carestia intensa, é comum que a distância entre o povo e seus autointitulados representantes seja evidenciada. Nesses contextos o imaginário das relações de poder, forjado pela intelligentsia, não dá conta de ocultar as consequências reais das ideias nele contidas e as pessoas passam a hesitar e a expressar rejeição a essa cosmovisão.
O monopólio da linguagem detido por ideólogos, contudo, limita as possibilidades de expressão, já que as referências discursivas são enviesadas e rasas, restando assim uma reação com base em narrativas confusas, que por vezes incorporam os espantalhos construídos pela oposição, ou atitudes pouco estratégicas, ambas associadas à truculência e à falta de polidez.
Quando isso acontece, as massas são abandonadas por seus instrutores, são apartadas do processo de tomada de decisões e rotuladas como inimigas de si próprias, como perpetradoras dos interesses de uma elite imaginária. Deixam de ser esteticamente interessantes para os mandantes e perdem sua função no processo de manutenção do poder.
Esses intelectuais não suportam que o povo fale o que quer e o que pensa de verdade, reagem das formas mais asquerosas, com deboche e olhares de repulsa. Não há um esforço real de compreensão, eles querem mandar e não servir, fornecem fórmulas binárias e simplistas ao invés de difundirem mecanismos elaborados de reflexão. E quando tomam uma invertida, lamuriam-se, vitimizam-se, fazem-se de chocados.
Usam mecanismos opressivos e autoritários a todo momento, arrogam-se o poder de definir as ideias que podem ser expressas e pensadas, e quando criticados posam de perplexos, dizem-se agredidos, censurados. São histriônicos ao elevar privilégios à categoria de direitos e acusam os que se opõe a isso de histéricos.
Há imprecisões no modo de expressar certas insatisfações e equívocos em determinadas movimentações, e, lógico, a responsabilidade individual continua existindo. Mas a verdade é que a classe pensante tem uma dívida com o povo. Nós o acuamos, limitamos seus mecanismos de expressão, criamos barreiras retóricas para nos tornar imunes a críticas. Assumimos um papel e não o exercemos, mas fingíamos ter o controle da situação.
Perdemos de vista o senso de proporções, fingimos saber de coisas que não sabíamos, mexemos no sentido dos signos linguísticos, moldamos o imaginário político a nosso favor enquanto simulávamos uma neutralidade científica, causamos confusão mental, e quando o comportamento resultante desse quadro de delírios que contribuímos para formar não nos apeteceu mais, passamos a fingir que não tínhamos nada a ver com isso.
Lembrou de uma aula com o Padre Paulo, sobre a concupiscência e os meios de se evitar a queda quando em tentação. Rezou ao Anjo da Guarda, três Ave Marias e várias jaculatórias ensinadas pela avó, mas a carne cedia, a imagem daquele decote, e até o perfume da mãe da amiguinha, estavam fixos em seus sentidos. Seu coração descompassava, ele tremia. Lembrou que o padre havia dito para evitarem distrações e pensamentos impuros na hora da comunhão, pois aquilo entristecia Nosso Senhor, além de ser uma indignidade para com o amor d’Ele conosco. Essa palavra, “indignidade” havia ficado impressa em sua mente desde aquela aula. Havia gostado dela. Passara a enxergá-la quando presenciava alguma injustiça, ou quando examinava sua consciência, então enxergava a palavra, em letras grandes, coloridas, “indignidade”, acompanhando-o a toda parte. E sobre a imagem do decote havia agora como que um carimbo vermelho com a palavra sendo batido repetidamente: “indignidade”, “indignidade”, “indignidade”.
Então seus pensamentos voaram para outras duas lembranças: uma conversa com um amigo da escola, e outra com o avô. Reviu a cena do coleguinha dizendo que havia escutado de um primo de um amigo uma história que o padre não contara, mas que era verdade, de que quando se tem pensamentos impuros na hora da comunhão, a hóstia sangra e a gente morre afogado naquele sangue. O colega havia contado a história mais de uma vez, com versões diferentes. Numa delas, não se tratava de pensamentos impuros, mas de morder a hóstia. Nos dois casos, havia ficado impressionado, e, com aquilo na cabeça, procurara o avô, com quem gostava de se aconselhar.
Tipo bonachão e gozador, havia muito tempo o avô perdera a fé. Falava das coisas de Deus sempre de maneira indiferente e debochada, o que encantava o menino, irritava a avó. Ela, por sua vez, balanceava a situação com seu jeito piedoso e persistente, ensinando ao menino sobre a vida dos santos e tentando fazê-lo compreender o sentido das orações que ele decorava de má vontade. E, naquele fogo cruzado, a simpatia pelo avô sempre ganhava mais pontos no coração do pequeno. E foi o velho que, aquele momento, venceu outra vez.
Lembrou do avô dando aquela sua gargalhada gostosa quando ele lhe falara sobre a hóstia sangrando. Aquele riso debochado já lhe passava segurança, e as palavras firmes do velho, com ar de autoridade, completavam a lição: aquilo tudo era bobagem, a hóstia não passava de um punhado de farinha que derretia na boca, e ponto. Não passava de um símbolo, uma representação de Cristo, que havia sido um homem bom e justo, no teatro da Missa. Se ele mordesse, ou se pensasse besteira na hora da comunhão, tanto fazia. Aconselhara que o neto seguisse o preceito do padre por respeito, educação, protocolo. Mas, se ficasse muito curioso, por que não experimentar? Problema não tinha.
Naquele momento ele percebeu que o avô o olhava de um dos bancos. Seus olhares se cruzaram, e o velho deu uma piscadela. Era como se estivesse lendo seus pensamentos e estivesse ali para dizer que estava tudo bem, que nada de errado iria acontecer. Aquilo bastou para que o menino adquirisse nova confiança. Estava decidido: iria morder a hóstia, com os pensamentos não apenas no decote, mas em todo o corpo da mãe da coleguinha, que agora ele despia safadamente em sua imaginação. Seu Anjo da Guarda, que estava em batalha desde que havia sido invocado há pouco, trocou um olhar com o do avô, e ambos se entristeceram.
Estava na vez do menino, e ele seguiu confiante, sem medo. Na hora em que o Bispo colocou-lhe a hóstia na boca, estava vivendo cenas indizíveis em sua imaginação. Mastigou com vontade o Corpo de Cristo, e então, o susto: a hóstia se transmutou em um pedaço de carne crua, sangrento. O pequeno sentiu o gosto daquele sangue que ia lhe escorrendo pelo queixo e pingando em sua roupa branca, e caiu de joelhos, apavorado. Voltou-lhe à mente, em letras garrafais, a palavra “indignidade”, e, logo em seguida, uma outra que estava amortecida, mas gravada em seu coração, tanto martelada pela avó: “caridade”. A palavra se fez enorme para ele, gigante, e era vermelha e sangrava como aquele pedaço de carne em sua boca. E em um segundo ele compreendeu o sentido de tudo o que havia aprendido de má vontade naquele último ano de catequese. Começou a chorar e olhou em torno: as pessoas o olhavam embasbacadas, a maioria havia se ajoelhado, muitos oravam, outros faziam o Sinal da Cruz. Quando ele olhou para os avós, estavam ambos ajoelhados, e o velho chorava de soluçar.
Naquele momento os Anjos dele e do avô se olharam de novo, e sorriram.
Vale a pena, por exemplo, meter-se em discussões com inimigos da verdade através de meios de comunicação ou de redes sociais? Creio que são questões prudenciais, e cada qual saberá o que convém fazer em cada caso concreto.
E porque se trata de questões prudenciais, parece-me que já não funcionam as receitas vintage que consistiam em instigar todo o mundo a se envolver na “batalha pela verdade”, entendendo-se por tal fazer o maior alvoroço possível. É a ideia, por exemplo, de que a verdade é por natureza combativa e que, necessariamente, está em contínua contenda contra o erro.
Há uma brevíssima carta que Dionísio Areopagita — o tão venerado e citado mestre de Santo Tomás — escreve ao sacerdote Sópatro, na qual lhe puxa a orelha porque, aparentemente, o padreco não parava de polemizar com os pagãos, na tentativa de mostrar-lhes o erro em que estavam e a verdade da fé cristã. Dionísio é claro: [Sópatro] deve abandonar esse costume de impor-se aos outros em nome da verdade.
Quer dizer que o Areopagita era um “progressista” e pensava que a caridade vem primeiro e que é melhor não brigar, por amor à paz? Não é esse o seu argumento. O que ele explica é que a disputa não implica necessariamente que o outro possa encontrar a verdade, quer dizer, enquanto gastamos energia para mostrar ao outro seu erro, a perdemos para fazer o que devemos por natureza: mostrar a verdade, e não o erro. E muitas vezes não se conseguirá senão o efeito contrário, pois a refutação do erro do outro pode provocar nele uma atitude refratária à verdade, considerada uma imposição externa, e não o resultado de um encontro pessoal.
E Dionísio vai ainda mais longe: “Se algo não é vermelho”, ele diz, “tampouco é necessariamente branco, e se algo não é cavalo, tampouco é forçosamente homem”, quer dizer, mesmo que eu seja capaz de mostrar o erro do outro, isso não significa que eu esteja na verdade, que é justamente o que importa. Na opinião de Dionísio, a coisa não funciona assim.
A conclusão do Areopagita é que aquilo a que está chamado o cristão não é impor a verdade através da disputa, mas ser reflexo da Verdade, “fazê-la brilhar” para os demais, transmitindo-lhes essa luz que ele mesmo recebeu. Diria até que é uma atitude passiva, como a do Sol e da Lua, que se limitam a estar aí e iluminar. Não se transmite a verdade mostrando-se o erro, mas deixando-a iluminar.
A verdade não precisa ser imposta. Impõe-se sozinha. Em todo o caso, precisa de homens que a reflitam.
Epístola VI
A Sópatro, sacerdote
Não penses ser uma vitória, venerável Sópatro (cf. At 20,4; Sosípatro, em Rm 16,21), o afrontares uma religião ou doutrina que te não pareça boa (cf. Tt 3,9); de fato, mesmo que sabiamente a critiques, nem por isso estão as coisas a favor de Sópatro [i]. Com efeito, tanto a ti quanto a outros, entre muitos erros e aparências, pode ocultar-se algo de verdadeiro [ii]. Ora, que uma coisa não seja vermelha, nem por isso já é branca, e que algo não seja cavalo, tampouco é necessariamente homem.
Assim pois hás de agir, se me deres ouvidos: deixarás de falar contra os outros, mas dirás de tal modo a verdade, que será irreprochável quanto disseres (cf. Lc 21,14s) [iii].
Um breve exame do site http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com/ basta para mostrar que o esquema petista tem o controle total da situação política e domina seus adversários para muito além do que estes ousam admitir em público ou até perante si mesmos.
O PT possui, para começar, um serviço de inteligência com informantes voluntários espalhados por todos os setores da existência social, prontos a vasculhar a vida financeira e pessoal de cada inimigo, fornecendo ao comando petista os elementos para destruir em poucos minutos as reputações que bem entenda. Os serviços secretos oficiais, hoje aliás também sob o controle do Partido-Estado, são apenas um pontinho na imensa área coberta pela KGB lulista.
O domínio estratégico que o PT exerce sobre a situação nacional estende-se para muito além do território brasileiro. Núcleos petistas ativos nos EUA e na Europa criaram uma rede de contatos que dá ao partido os meios de intimidar e paralisar seus adversários por intermédio da pressão de poderes internacionais (e ainda reclamar que “agentes do imperialismo” são os outros). Quem pode contra isso?
Há ainda a imensa malha de organizações militantes, treinadas e experientes, fazendo com que a declaração do sr. presidente, de que é o campeão imbatível da mobilização popular, não seja de modo algum uma bravata, mas a expressão fiel de uma realidade temível.
Os adversários do petismo, em contrapartida, só têm, em matéria de meios de ação, aqueles que lhes são propiciados pela posse de vários órgãos de comunicação – jornais, rádios e estações de TV – cujo funcionamento depende da proteção estatal e portanto, em última instância, do beneplácito petista. O PT é proprietário e mandante direto dos seus meios de ação e ao mesmo tempo é o provedor e administrador das armas dos seus adversários, apto a controlar a pressão oposicionista como o maquinista que gira as válvulas numa caldeira industrial.
Tais são as razões pelas quais a chamada “Zé-lite” só pode mover, contra o império petista, uma oposição débil, autocastrada e condenada a sobreviver dos favores de um inimigo onipotente. Toda a vida política nacional tornou-se uma agitação de superfície que só serve para encobrir e garantir a supremacia petista.
Nem conto, nesse diagnóstico, com o fato incontestável de que quase todos os antipetistas na classe rica estão tão sujos e comprometidos em esquemas de corrupção quanto a própria elite petista, com a diferença de que esta sabe mais da vida deles do que eles jamais saberão dela.
Nem menciono a evidência banal de que todo o trabalho petista se apóia numa elaboração analítica e estratégica de muitas décadas, que lhe dá uma retaguarda histórica e um horizonte de consciência incomparavelmente mais vastos do que seus adversários podem sequer imaginar.
E não é preciso lembrar que a assim chamada “oposição”, culturalmente cercada e enquadrada pela hegemonia gramsciana desde pelo menos duas gerações, nem mesmo consegue raciocinar fora dos parâmetros impostos pela cosmovisão esquerdista que domina até os pontos mais íntimos e discretos do imaginário nacional.
O fato de que até manifestações populares modestas e limitadíssimas, como as que se viram nas semanas passadas, surjam aos olhos do PT como intoleráveis ameaças golpistas, mostra até que ponto o esquema dominante se afeiçoou às delícias de um poder absoluto que nem mesmo precisa destruir fisicamente seus adversários porque psicologicamente já os colocou de joelhos.
Um comunista autêntico fez essa pergunta em 1902, em seu volume “Что дѣлать?”, que traduzindo do russo seria exatamente a pergunta do título: "o que fazer?". O pessoal da direita faria muito bem em ler esse panfleto de Vladimir Lenin.
Algumas pessoas vão dizer “ah, mas ele era um comunista, um assassino e um ser satânico e desprezível!”; de fato, ele era tudo isso, e eu não tenho a menor dúvida de que esteja dando umas braçadas hoje no rio de lava e enxofre do abismo, destinado a tipos como ele. Isso não vem à questão. A verdade é que ele era também uma imbatível inteligência do movimento comunista, exercendo as funções de agente revolucionário e cientista político de sua época.
Mas aqui você não vai lê-lo pensando em sua nefasta figura pública, mas sim como um INTELECTUAL do movimento dele. Quantas e quantas vezes o nosso grande jornalista Allan dos Santos já teve que parar e ler, ensinar aos outros estratégias de Lenin, Stalin, Gramsci e outros do movimento comunista? Isso seria o que Sun Tzu chamaria de CONHECER O SEU INIMIGO. Eu vou um pouco mais longe: aprender com ele. Sim, porque as coisas que podem nos produzir bons resultados (observando, claro, nossos valores morais) devemos copiar de quem quer que seja. Portanto, se Lenin tem algo de bom a ensinar sobre estratégia e teoria política, devemos prestar atenção no que ele fala.
A boa notícia é que você não precisa gastar dinheiro em um livro de Lenin, pois a obra dele está disponível para download ou leitura no site Marxists.org. Vá lá e leia. Eu o fiz, e tenho aqui alguns apontamentos que ele fez no decorrer das páginas 99 a 101 de seu panfleto, quando fala dos quatro períodos da social-democracia russa. Você vai notar em partes semelhanças com o movimento conservador no nosso país e como podemos aplicar a teoria de Lenin na prática nossa para beneficiar uma nação inteira com isso.
Para começar a conversa, Lenin fala do primeiro período do movimento, o que ele chama de “período uterino”, descrevendo o movimento dessa época como sem ações de movimento operário e atravessando como partido político.
Depois Lenin descreve o segundo período, que ele chama de infância e adolescência, em que movimentos sociais começavam a se formar, e líderes que queriam empreender uma luta contra o populismo e pelas greves começavam a ver a necessidade de LER e ESTUDAR, culminando com a formação de um partido político.
Aí vinha algo que ele não via com bons olhos no terceiro período, assemelhado a um adolescente que começa a dar notas falsas. Apesar disso, e de dirigentes com ideias ultrapassadas, o movimento crescia nas ideias marxistas e na ânsia de conhecimento da base intelectual, pois o crescimento popular era ESPONTÂNEO, e jovens queriam cada vez mais conhecer para saber como agir.
Por fim eis o quarto período, o da completa maturidade em que o movimento começa a ter completo controle da situação presente, do futuro e da estabilidade cultural que ele impõe.
Bom, como podemos notar por essas breves descrições, dá pra se pescar semelhanças com algumas situações brasileiras aqui e ali, mas como sabemos que no Brasil é tudo ao contrário e bagunçado, também notamos que os movimentos conservadores brasileiros quiseram, em grande parte, dar o passo maior do que a perna, passar fases na frente de outras e com isso acabaram – para usar um termo bem apropriado – se lascando de cima a baixo. O professor Olavo de Carvalho avisou lá atrás que esses tipos de processos não podem acontecer pulando etapas. Porém, quis o brasileiro fazer um presidente da república sem primeiro construir o caminho consolidado e seguro que levaria a isso.
De um lado eu posso até entender a necessidade que tínhamos de tirar o PT do poder em 2018. Totalmente compreensível dado o histórico nojento e inconstante da RÉ-pública de Deodoro imposta no golpe de 15 de Novembro de 1889, cheia de crises e muita confusão. Eu mesmo fui apoiador dessa ação de termos um presidente do nosso lado. De outro, sou obrigado a alertar que tivemos o fim amargo que tivemos em 30 de Outubro de 2022 justamente por querer pular etapas.
Dá até para eu ver o professor Olavo de Carvalho descendo do Céu e entregando a um de nós um bilhetinho (naquele famoso meme do anjo) escrito “EU AVISEI, ORAPORRA!”
Perdemos a cereja do bolo sem nem ter o bolo.
Lenin termina a parte conclusiva de sua obra panfletária com os seguintes dizeres:
“Em jeito de exortação a esta «rendição» e resumindo o que acabamos de expor, podemos dar à pergunta: que fazer? a breve resposta: Liquidar o terceiro período.”
O terceiro período a que Lenin se refere trata dos dirigentes de ideias toscas e aproveitadores de plantão, gente que não se interessa em estudar e se dedicar de fato a construir uma base sólida do movimento para chegar lá. Adolescentes de cabeça, impulsivos e reativos.
A diferença: a esquerda ouviu Lenin na época e fez exatamente isso: eliminou essa etapa.
Conseguiremos nós, após essa dura cacetada das últimas eleições, finalmente escutar a voz da razão do professor Olavo nos alertando e passar a fazer as coisas como se deve? Essa pergunta, eu deixo para vocês responderem.
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