Edição LXVII (Terça Livre, Revista Esmeril 37, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 37
- Contas do Rosário (Vitor Marcolin)
- A conversão do comunista (Leônidas Pellegrini)
Por que na entrada? Explico. Logo que chegou às portas do Inferno (lugar sem estrelas no céu), Virgílio e Dante se encontram com uma multidão de covardes. Gritavam, suspiravam, choravam. Bradavam suas mágoas. Arrependidos, amargavam sua covardia. “Questo misero modo / tegnon l'anime triste di coloro / che visser sanza ‘nfamia e sanza lodo” – Neste miserável estado estão as tristes almas daqueles que viveram sem infâmia e sem louvor (Canto III, 34-36).
O Céu não os quis porque sua presença rebaixaria a glória celeste – e o Inferno também não, porque sua presença proporcionaria
certa glória aos condenados. O mundo sequer se lembra deles. Como poderia? Eles se calaram diante das injustiças, das mentiras. “Viveram sem infâmia e sem louvor”. E porque “sem infâmia”. Porque não foram difamados! Como diz o dito popular, “passaram em brancas nuvens”. Virgílio, aborrecido com a preocupação de Dante Alighieri com eles, então diz: “não se preocupe. Olha e passa”.
Assim, deixemos de hipocrisia: viver é lutar. Viver realmente é se
posicionar. Com isso, criamos inimigos. É inevitável. Só os covardes não têm inimigos. Pior que isso é serem desprezados, desprezíveis. Cônscios disso – que temos que “matar um leão por dia” – o passo seguinte é: como vencer as batalhas cotidianas? Como vencer a guerra? É preciso cálculo, frieza, planejamento. P-l-a-n-e-j-a-m-e-n-t-o!
Para derrotar a “Quinta Coluna” – os funcionários esquerdistas há décadas assentados
em seus cargos (a Nomenklatura) – é essencial um BOM serviço de Inteligência.
Conhecer cada adversário, homem a homem, a história de suas ocupações na
hierarquia, de seus avanços e retrocessos. “Sondar o inimigo antes da luta é
essencial” (Sun Tzu). Vence-se uma guerra no silêncio de sua preparação. Isso
se faz, como diz o povo, “na surdina”, longe dos (milhares de) técnicos de
futebol das redes sociais, que desconhecem os bastidores do Poder.
Não se alardeiam vitórias antes da capitulação. No caso da Cultura – que o “pum” não pode, de modo algum, entrar em sua definição – a complexidade é regra. Pior: desde a década de 30, a Cultura foi, pouco a pouco, dominada mundo afora por essa Nomenklatura. Foi a URSS
quem criou o primeiro Ministério da Cultura, “for God’s sake”! E como temos em nosso país stalinistas
espirituais, filhos da revolução forjados
há décadas na Educação e na Cultura! Vencer um combate interno, em sua própria trincheira: eis o desafio de um governo apoiado por uma direita insipiente, por uma direita vaidosa e exibicionista diante de um exército disciplinado como o espartano, experiente como o napoleônico e hierarquizado como o soviético. A Cultura não é como a Economia: levará décadas para resolver problemas que na Economia se resolve em anos.
Mas escrevo tudo isso porque sou um néscio. Herdeiro da “Maldição de Cassandra”, sou um idiota: dou pérolas a porcos (Mt 7, 6), que me estraçalham cotidianamente. Mas insisto. Por quê? Porque não sou morno, não quero ser vomitado no Dia do Juízo Final, nem ficar nas portas do Inferno por toda a Eternidade arrependido por minha omissão. Por ser “isentão”.
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👆 Matthew Tyrmand: Suprema Corte brasileira proíbe a publicação de coisas desagradáveis sobre o socialista corrupto Lula da Silva antes da eleição
O movimento comunista-globalista está pressionando por uma vitória de Lula da Silva. Morrem de medo de Jair Bolsonaro, o Trump dos Trópicos.
Nessa semana a Suprema Corte esquerdista proibiu a estreia de um filme, antes da eleições, sobre Jair Bolsonaro e a tentativa de assassinato contra ele.
A corte também exigiu que 30 plataformas pró-Bolsonaro sejam desmascaradas para que o público possa ver quem são.
Além disso, a corte proibiu comentaristas de postar nas redes sociais que o criminoso socialista Lula da Silva é corrupto, mesmo depois de ter passado meses na prisão por acusações de corrupção.
O Brasil parece muito com os EUA, não é?
Enquanto isso, o ministro da Suprema Corte Luis Roberto Barroso se encontrou com o candidato socialista e criminoso Lula da Silva para uma reunião privada, na terça-feira.
Mais tarde, a foto de Barroso foi divulgada na saída da reunião e postada online.
Da tevê para o celular
Larguei o celular e sentei-me diante da tevê. Nesses últimos dias ando muito perturbado, só pode ser consequência das disputas políticas que testemunho cotidianamente. A bem da verdade, eu sou um mísero CPF com pouquíssimo interesse em contribuir opinativamente sobre os fatos que nos chegam vindos de Brasília. Se há lei e ordem, se há viés liberal e se há liberdade eu me dou por satisfeito, nem penso mais em política. Mas, para a minha tristeza, não é o que percebo, todos os dias, quando vejo o noticiário — na internet ou na tevê.
Só um cego não vê que a lei, a ordem e a liberdade estão sob gravíssima ameaça em terras tupiniquins. Dizem as más línguas que este ente genérico chamado brasileiro tem memória curta; bem, as línguas que dizem isto não são de todo más. Desde o dia 15 de novembro de 1889, quando um golpe de estado pôs fim ao estável e próspero regime monárquico — isto é pura História, basta ler para comprovar –, o Brasil, daí para frente republicano, passou de golpe em golpe, de crise em crise, de disputa em disputa até os nossos dias. Desde o final do século XIX o Brasil não sabe o que é passar pelo menos 20 anos com alguma estabilidade.
O âncora do jornal na plataforma de vídeos na internet comenta sobre os resultados estranhos das pesquisas eleitorais e da própria eleição no primeiro turno. Não me recordo de ter testemunhado uma conjuntura dessas… O homem fala com uma indignação tão contundente que reverbera até mim, sentado no sofá. Decido sair. Vou até a geladeira, apanho um iogurte integral, adiciono açúcar, uso uma colher para deixar a mistura o mais homogênea possível e torno à sala. “Todas as pesquisas feitas e veiculadas por esses institutos erraram, todas!”, disse o jornalista de cabelos brancos.
Se é verdade que é impossível amar sem sofrer, então eis a prova de que muito amo o meu país. Estranho. Tenho a impressão de que alguém que me lê faz cara de reprovação. Por quê? Por que é feio amar a terra onde se nasce? Por que é uma atitude digna de censura expressar amor à terra natal, à língua natal, à cultura natal… à religião? A quem isto incomodaria tanto? O que se ganha com isto? Não é preciso ter ido muito adiante no esforço investigativo de caráter histórico e sociológico a fim de vislumbrar uma resposta. Não. Basta observar a dinâmica do mundo comunista que nos cerca. Está tudo lá.
Deus? Quem é Deus? Se houve um, já morreu há muito. Família? Não, aqui todos nos irmanamos na grande pátria bolivariana. Liberdade? Só para cumprirmos com o nosso dever para com o Estado… Enquanto assistia ao ótimo jornal na internet – coisa fina mesmo, caprichada, do tipo que não se vê na tevê aberta, do tipo que admite uma dose mais vigorosa da velha confrontação dialética da qual falava Aristóteles –, comecei a fazer uma concatenação de todos os fatos que eu ouvira ou lera sobre a situação.
A “democracia” tal como encenada no Brasil é mesmo uma coisa estranhíssima. Alguns diriam que é tragicômica; eu, como sou realista, digo que é só trágica. Não tem graça. Aliás, de tanto olhar para ela, o sujeito, se for demasiado sensível, pode sair chorando. O governo “democraticamente” instituído deve honrar e defender os valores honrados e defendidos pelo povo. Óbvio, a política não trata dos valores, mas do poder; no entanto, aquele que exerce o poder – se eleito sob uma democracia – tem sim o dever de honrar e defender os valores daqueles que o elegeram. É muito simples, ou será que não?
Mas não é assim que acontece, não no Brasil. Por aqui os políticos de esquerda, tão logo se veem no exercício do poder – conquistado à base da mentira –, tratam de iniciar uma verdadeira revolução: chutam para além do horizonte todo e qualquer resquício do comprometimento assumido durante a campanha com os “valores” do povo em prol da velha e famigerada agenda revolucionária. Basta usar os olhos para comprovar. É evidente.
Quem, dentre os políticos da canhota, tem a coragem de interpelar o povo sobre ideologia de gênero, liberação das drogas ou aborto? O próprio chefe dos vermelhos, o Nove-Dedos, afirmou certa feita que “o povo não está preparado para esse tipo de discussão”. Não, claro que não! E por quê? Ora, porque são discussões que só admitem a ponderação da elite, o povão que vá cuidar das contas do seu Rosário. Nada mais antidemocrático, nada mais vil, nada mais covarde e mentiroso do que o discurso da esquerda. Eis aí um dos indícios de que a gênese da demagogia é a própria democracia. O velho Aristóteles continua atualíssimo.
Desligo a tevê, apanho o celular, torno à plataforma de vídeos, escolho um andamento allegretto para violino na minha lista de reprodução e… desisto. Ando muito perturbado nos últimos dias. Vou cuidar das contas do meu Rosário.
Aos 9 anos ele exultou ao votar pela primeira vez em um comunista de estimação em uma eleição simulada na escolinha. Aos 12, estava nas ruas, com os familiares, panfletando para eleger o primeiro prefeito comunista da cidade. Adolescência afora, militou com energia e ódio para eleger outros tantos prefeitos, vereadores, deputados e governadores das mais variadas siglas, mas todos amigos do Partidão. Nessa época, só não logrou eleger seu candidato à Presidência, aquele mesmo que amava desde os 9 aninhos.
Levou a militância para a juventude e a vida adulta, com muito mais gana e mais ódio. Aliás, foi nesse período que profissionalizou seu ódio. Militava para viver e vivia para militar. Esteve à frente de lideranças estudantis, depois de um sindicato. Filiou-se ao Partido, vivia pra o Partido. Trabalhou pra tantos e tantos políticos, das mais diversas formas, honestas ou não, sempre focado no bem maior da Revolução. Nessa época, também, degenerou-se tanto quanto podia. Tornou-se boêmio e mulherengo, sempre se gabando das suas conquistas.
Chegou aos 35 naquela vida de Revolução, bebedeira e mulheres. Cansado, é verdade, e sempre ressentido, insatisfeito, revoltado nem sabia mais com o quê. A verdade é que havia algum tempo que não via mais em que se fiar. Chegou mesmo a pensar em um suicídio poético umas duas vezes. Por aquele tempo começou a pensar muito nos avós, principalmente quando passava em frente a alguma igreja. Pensava neles, relembrava diversos momentos felizes da infância e da adolescência, e sentia culpa. Sentia seu peito apresso, pesado, procurava um lugar para chorar escondido. Mas logo amortecia esse sentimento com mais bebida, mais mulheres, mais inutilidades que comprava e viagens solitárias que fazia.
Um dia, em uma dessas viagens, resolveu visitar uma cidade histórica, que se tornou uma tortura para ele. Cada uma das tantas igrejas barrocas que visitava trazia-lhe à mente a vó e o vô, as lembranças todas, e o peito pesava. E foi com peito pesado e triste que, em um fim de tarde, subindo uma ladeira de paralelepípedos, deparou-se com um incêndio em um daqueles templos. O fogo consumia a estrutura com uma voracidade que o corpo de bombeiros não conseguia conter. E no meio daquelas chamas ele viu uma enorme cruz que, se desfazendo no fogo, caiu e se quebrou no solo, chamuscada, preta. E olhando para aquele fogo todo, e o negrume da fumaça, olhou para dentro de si e viu sua alma. Lembrou das lições da avó na infância, e também do rosto triste do avô, tantos anos atrás, em um leito de hospital, a clamar por sua conversão. Então caiu de joelhos e chorou de soluçar, na frente de todos, um espetáculo à parte a dividir a atenção dos circundantes que assistiam ao incêndio.
Levantou-se rapidamente e correu ao hotel, evitando olhar as pessoas, envergonhado. Não dormiu aquela noite, que passou rezando as orações que a avó havia ensinado. Na manhã seguinte, foi procurar o um padre. Havia muito o que conversar. Havia muito o que confessar.
Não tinha sido o primeiro ataque ao Pe. Popiełuszko. Ele sofrera um atentado poucos dias antes, quando arremessaram uma pedra no para-brisa de seu carro. Antes disso, foram plantadas armas no quarto da casa paroquial para que ele fosse acusado de inimigo do Estado. Ele já tinha sido “entrevistado” pelo promotor.
Os “crimes” de Popiełuszko foram defender os direitos inalienáveis de seu povo: o direito de associação, de formar sindicatos livres e o direito à própria cultura. Ele era inflexível quanto à natureza não-violenta de sua resistência — o jovem sacerdote adotou o lema: “Não te deixes vencer pelo mal, mas triunfa do mal com o bem” (Rm 12, 21).
Solidariedade era uma ameaça ao regime socialista na Polônia, tanto do ponto de vista de seus cidadãos (expondo a hipocrisia de um autoproclamado regime de “trabalhadores e camponeses” que era rejeitado pelos próprios trabalhadores) como do ponto de vista da União Soviética (cuja “assistência fraternal” aos moldes da que havia ocorrido na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968 era temida pelos comunistas de Varsóvia). Os comunistas de Varsóvia haviam alimentado a esperança de extinguir o Solidariedade quando o General Wojciech Jaruzelski declarou guerra ao próprio país, impondo a lei marcial em 13 de dezembro de 1981. Os ativistas do Solidariedade foram presos; o sindicato foi posto na ilegalidade e seu nome não devia ser pronunciado.
O Pe. Popiełuszko não recebeu esse memorando.
Ele agiu com o Solidariedade tanto durante o período de legalidade do sindicato (de agosto de 1980 a dezembro de 1981) quanto depois que a associação foi banida. A arma escolhida por ele foi a oração.
Pe. Popiełuszko se tornou o principal celebrante de uma “Missa pela Pátria”, rezada mensalmente na Igreja de Santo Estanislau em Varsóvia. A Missa era oferecida pelas intenções dos presos e mortos, pela Polônia e até por seus opressores. As homilias mensais dele focavam em direitos humanos básicos, recordando às pessoas que ao menos alguns de seus direitos preexistiam e não dependiam de qualquer governo. Entre eles estava o direito de associação.
A popularidade dos esforços e da pregação do Pe. Popiełuszko se espalhou como um incêndio por toda a Polônia, e o público da Missa pela Pátria só aumentava. Longe de relegar o Solidariedade ao esquecimento histórico, o frágil sacerdote na verdade manteve o movimento no centro das atenções. Nem a persuasão nem a intimidação podiam dissuadi-lo.
Do ponto de vista do Ocidente e da Cortina de Ferro hoje inexistente, podemos nos alinhar instintivamente ao trabalho de Popiełuszko. Mas é sempre fácil ser engenheiro de obra pronta.
Em outubro de 1984, poucas pessoas esperavam que, cinco anos depois, a Polônia emergiria de seus 45 anos de pesadelo comunista. Em outubro de 1984, o septuagenário Konstantin Chernenko havia sucedido há pouco o chefe da KGB Yuri Andropov como cabeça da União Soviética. Mãos de ferro (ainda que um pouco esclerosadas) pareciam ser o padrão da época.
Do ponto de vista legal, Popiełuszko era foco de interesse acusatório. Em dezembro de 1983, teve início uma investigação acusatória focada no “abuso da liberdade de consciência e religião porque… [ele dizia em seus sermões que] o governo faz uso de falsidades, hipocrisia e mentiras, e por meio de leis antidemocráticas destrói a dignidade humana…”
César sempre considerou problemática a liberdade de consciência. Reconhecer que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus…” (Gaudium et Spes, 16), como o fez o Vaticano II, significa reconhecer que um homem tem outras lealdades para além de César, e que são relativos seus pretensos direitos sobre ele. A Sagrada Escritura pode ordenar dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus, mas Deus sempre continua sendo Deus e sempre estará acima de César. Na verdade, assim como as leis de César são inerentemente limitadas, o mesmo acontece com o próprio homem: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer” (Gaudium et Spes, ibid.). A consciência é sagrada, mas a dignidade humana vem de Deus.
Os Pais Fundadores dos Estados Unidos reconheceram isso ao admitir que as pessoas “receberam do Criador certos direitos inalienáveis”. Quando César os viola, perde o direito de exigir obediência. César, no entanto, é propenso à apoteose [isto é, à autodivinização]: ao arrogar para si a soberania, ele insiste em determinar quando a consciência pode exigir algo e quando não pode.
Pe. Jerzy Popiełuszko disse não a isso. Ele não estava desvinculado da realidade. Conhecia muito bem as realidades geopolíticas nas quais ele e seu país se encontravam. Mas também reconheceu — tal como diria Václav Havel mais tarde — que o homem não precisa “viver na mentira”. César pode até estar presente, mas não deve ser confundido com Deus, menos ainda lisonjeado como uma deidade beneficente.
Popiełuszko não defendeu o uso da violência. Na verdade, ele falou explicitamente em combater o mal com o bem. Não propôs o recurso à violência, mas era um revolucionário: propunha uma revolução da consciência que se recusava a “viver na mentira”. Clamava por uma revolução da consciência que reconhecesse os direitos humanos como dons de Deus, e não do governo. Clamava por uma revolução do espírito que reconhecesse isto: a dignidade humana vem do fato de o homem ser feito à imagem e semelhança de Deus.
Hoje, os direitos de consciência estão se tornando cada vez mais um assunto controverso no próprio Ocidente, pois César procura impor seus próprios valores como preço da cidadania. Talvez não sejamos chamados a dar o mesmo testemunho do Pe. Popiełuszko, mas seu exemplo de defesa dos direitos de consciência deve nos inspirar. Ele enxergava no homem mais do que simples matéria: enxergava a imagem d’Aquele a quem devia sua total lealdade e a quem serviu fielmente até a morte.
Estaremos prontos para defender esses direitos quando César os negar, na verdade, quando estiver disposto a penalizar aqueles que o desafiam?
A festa do Pe. Popiełuszko coincide com a festa dos mártires norte-americanos, jesuítas franceses martirizados pela fé no século XVII [i]. A morte de Isaac Jogues, João de Brébeuf e seus companheiros foi, sob muitos aspectos, tão sádica quanto a de Popiełuszko. Também eles foram testemunhas de Deus ao reconhecer o nobre chamado daqueles com quem viviam e em meio aos quais morreram. O sacerdote-mártir continua sendo um tesouro especial da Igreja.
O estilo é o homem? Sim, e o é para o bem e para o mal. Para o bem, quando a análise revela, por trás das construções sintáticas e figuras de linguagem, a percepção viva de aspectos obscuros e dificilmente dizíveis da experiência humana, que assim emergem da nebulosidade hipnótica onde jaziam e se tornam objetos dóceis da meditação e da ação, transfigurando-se de fatores de escravidão em instrumentos da liberdade. Para o mal, quando nada mais se encontra por baixo da trama verbal senão o intuito perverso de construir uma “segunda realidade” à força de meras palavras, transportando o leitor do mundo real para um teatro de fantoches onde tudo e todos se movem sob as ordens do distinto autor, elevado assim às alturas de um pequeno demiurgo, criador de “outro mundo possível”.
Para demonstrá-lo, pedirei ao leitor a caridade de seguir até o fim esta exposição do sr. Leonardo Boff, conselheiro de governantes e, segundo se diz, até de um Papa, bem como, e sobretudo, porta-voz eminente de uma “teologia da libertação” onde não se encontra nenhuma teologia nem muito menos libertação:“A pobreza não se restringe ao seu aspecto principal e dramático, aquele material, mas se desdobra em pobreza política pela exclusão da participação social, em pobreza cultural pela marginalização dos processos de produção dos bens simbólicos…
“A pauperização gera por sua vez a massificação dos seres humanos. O povo deixa de existir como aquele conjunto articulado de comunidades que elaboram sua consciência, conservam e aprofundam sua identidade, trabalham por um projeto coletivo e passa a ser um conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados, um exército de mão-de-obra barata e manipulável consoante o projeto da acumulação ilimitada e desumana.
“Essa situação provoca um modelo político altamente autoritário… Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da pobreza.”
O trecho é extraído do livro E a Igreja se Fez Povo (Círculo do Livro, 2011, p. 167). Tudo o que aí se descreve realmente aconteceu. São fatos, e fatos tão bem comprovados historicamente, que não teríamos como recusar ao sr. Boff um definitivo “Amém”, se não nos ocorresse a idéia horrível de perguntar: Aconteceu onde e quando?
O segundo parágrafo fala-nos de algo que aconteceu na Europa nas primeiras décadas do século XIX: massas de camponeses reduzidos à miséria pelo rateio dos seus parcos bens e obrigados a deixar suas terras para vir à cidade compor um “conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados”, reservatório de mão-de-obra barata para a prosperidade dos novos capitalistas. Karl Marx descreve em páginas que se tornaram clássicas a formação do proletariado urbano com os destroços do antigo campesinato, no começo da Revolução Industrial.
Mas justamente onde isso aconteceu não aconteceu nem pode ter acontecido o que se descreve no parágrafo anterior: a “pobreza política pela exclusão da participação social” e a “pobreza cultural pela marginalização dos processos de produção dos bens simbólicos”. Bem ao contrário, a vinda dos camponeses para as concentrações urbanas coincidiu com o advento das eleições gerais, não apenas convidando mas forçando a participação das massas numa política que lhes era totalmente desconhecida no tempo em que viviam no campo, isoladas dos grandes centros.
E coincidiu também com a criação da instrução escolar obrigatória, que extraía os filhos dos proletários das suas culturas locais provincianas para integrá-los na grande cultura urbana da razão, da ciência e da tecnologia, substancialmente a mesma cultura das classes altas, dos malditos capitalistas. Pode-se lamentar a dissolução das velhas culturas locais, mas ela não aconteceu pela exclusão e sim pela inclusão das massas na vida política e na cultura urbana.
A “exclusão da participação social” e a “marginalização dos processos de produção de bens simbólicos” aconteceram, sim, mas a centenas de milhares de quilômetros dali, em países da África, da Ásia e da América Latina que viriam a ser chamados de “Terceiro Mundo” justamente porque neles não houve Revolução Industrial nenhuma, nem portanto integração das massas, seja na política, seja na cultura urbana.
O sr. Boff cria a unidade fictícia de um espantalho hediondo com recortes de processos históricos heterogêneos e incompatíveis, ocorridos em lugares enormemente distantes uns dos outros. A única realidade substantiva desse monstro de Frankenstein é o ódio que o sr. Boff desejaria instilar contra ele na alma do leitor.
Mas a fisionomia do monstro não estaria completa sem uma terceira peça, que o sr. Boff vai buscar em outro lugar ainda:
“Esta situação, diz ele, provoca um modelo político altamente autoritário… Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da pobreza.”
Descontemos a imprecisão vocabular — “provocam” em vez de “produzem” – e a sintaxe subginasiana: “esta” em vez de “essa” e “se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos” em vez de “se pode produzir um mínimo de coesão e abafar os gritos”. Vamos direto aos ponto essencial: é verdade que para controlar as massas esfomeadas surgiram governos autoritários, mas não na Europa da Revolução Industrial nem nos EUA da mesma época, onde justamente iam triunfando as instituições democráticas junto com o capitalismo nascente, e sim, bem ao contrário, em países subdesenvolvidos (ou empobrecidos pela guerra), que, invejando a prosperidade das nações industrializadas, mas não dispondo de uma classe capitalista pujante e criativa, resolveram industrializar-se às pressas e à força por via burocrática, desde cima, por meio do investimento estatal maciço e da economia planificada. Foi essa a fórmula econômica da Alemanha nazista, da Itália fascista e, obviamente, a de todas as nações socialistas queridinhas do sr. Boff. Foi também, pelas mesmíssimas razões, e embora em menor grau, a da ditadura Vargas e a do governo militar brasileiro.
Em suma, se fosse possível juntar o que há de mau nos países mais distantes, nos tempos mais diversos e nos regimes mais heterogêneos, teríamos aí o monstro ideal contra o qual o sr. Boff deseja voltar a ira da platéia. O sr. Boff aposta na possibilidade de que o leitor não repare na superposição postiça de recortes e, impressionado pela soma de maldades, acredite piamente estar vivendo entre as garras do monstro, tirando daí a conclusão lógica de que deve deixar-se libertar pelo sr. Boff.
Nisso, e em nada mais, consiste a “teologia da libertação”. A técnica da superposição é, a rigor, o único procedimento estilístico e dialético do sr. Boff e o resumo quintessencial do seu, digamos, pensamento. Podemos encontrá-la, praticamente, em cada página da sua autoria, onde em vão procuraremos outra coisa.
Já poucas linhas adiante temos outro exemplo, no trecho em que ele usa a figura de são Francisco de Assis como protótipo do revolucionário que ele mesmo pretende ser. O leitor, paciente e bondoso, por favor, siga mais este paragrafinho:
“Tal atitude [a de S. Francisco ao rejeitar os bens do mundo] corresponde à do revolucionário e não a do reformador e do agente do sistema vigente. O reformador reproduz o sistema, introduzindo apenas correções aos abusos por meio de reformas… O que [Francisco] faz representa uma crítica radical às forças dominantes do tempo… Não optou simplesmente pelos pobres, mas pelos mais pobres entre os pobres, os leprosos, aos quais chamava carinhosamente ‘meus irmãos em Cristo’.”
Francisco aparece aí, pois, como o revolucionário que em vez de servir ao sistema vigente busca destruí-lo e substituí-lo por algo de totalmente diverso. Nem discuto a inverdade histórica, que é demasiado patente. São Francisco jamais se voltou contra o sistema hierárquico da Igreja, mas, ao contrário, fez da sua ordem mendicante o instrumento mais dócil e eficiente da autoridade papal. Para usar os termos do próprio Boff, corresponde rigorosamente à definição do “reformador” e não à do “revolucionário”.
Mas o ponto não é esse. A coisa mais linda é que, segundo o sr. Boff, quando Francisco se aproxima não somente dos pobres, mas “dos mais pobres entre os pobres”, isto é, dos leprosos, há nisso um claro protesto contra a hierarquia social. Mas desde quando a lepra escolhe suas vítimas por classe social? Não eram leprosos o rei de Jerusalém, Balduíno IV, e o rei da Alemanha, Henrique VII, filho do grande imperador Frederico II e de Constança de Aragão? Francisco recusaria o beijo ao leproso de família rica? Superpondo artificialmente a idéia da deformidade mórbida à da inferioridade econômica, que lhe é totalmente alheia, o sr. Boff faz do menos anti-social dos gestos de caridade cristã um símbolo do ódio revolucionário, e o leitor, estonteado pela imagem composta, nem percebe que foi feito de trouxa mais uma vez, engolindo como pura teologia católica a velha distinção marxista entre reforma e revolução. Desfeito pela análise o jogo de impressões, a “teologia da libertação” do sr. Boff revela-se nada mais que uma técnica de escravização mental.
Sim, o estilo é o homem. Uns escrevem para mostrar, outros para esconder e esconder-se, lançando, desde as sombras, a miragem de uma falsa luz.
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