Edição LXXX (Terça Livre, Revista Esmeril 44, opinião e mais)
REVISTA ESMERIL 44
- Douto Desconhecimento (Fabio Blanco)
- Aconteceu num casamento (Leônidas Pellegrini)
apresenta características tão evidentes a ponto de serem
ululantes, quase sempre tornam-se imperceptíveis sem uma apurada observação. Algo como observar a existência do ar.
Alexandre Costa
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Canal: www.youtube.com/c/AlexandreCosta
Em primeiro lugar, Von Mises acreditava que os preços, incluindo os salários, devem ser determinados pelas forças de mercado, ou seja, pela oferta e demanda. Segundo essa perspectiva, os salários devem ser livremente negociados entre empregadores e trabalhadores, sem interferência do Estado. A imposição de um salário mínimo fixo, na visão de Von Mises, distorce as relações entre oferta e demanda de trabalho, impedindo que essas forças de mercado determinem o valor justo do trabalho.
Além disso, Von Mises argumentava que o salário mínimo cria desemprego ao estabelecer um piso salarial acima do que alguns empregadores estão dispostos a pagar. Se o salário mínimo excede o valor que um empregador considera viável para determinado trabalho, ele pode optar por não contratar ou demitir funcionários, ou ainda automatizar certas tarefas para reduzir custos. Isso pode resultar em um excesso de oferta de trabalho, o que aumenta o desemprego, especialmente entre os trabalhadores menos qualificados ou com menor produtividade.
Imagine que uma pessoa inicie um negócio para vender churrasquinho na esquina de sua casa. Após um pequeno lucro, resolve alugar um estabelecimento e aumentar a produção. Essa pessoa precisará de funcionários, mas se não puder pagar o salário estabelecido pelo Estado, o dono terá de escolher entre ter funcionários sem carteira assinada e em breve poderá enfrentar um tribunal que certamente irá acabar com seu negócio. Quantos empregos não são gerados no Brasil por causa disso? Muitos, certamente.
Outro ponto de preocupação para Von Mises é o impacto negativo do salário mínimo sobre os trabalhadores de baixa renda. Ele argumentava que, ao aumentar o custo da mão de obra, o salário mínimo pode dificultar o acesso desses trabalhadores ao mercado de trabalho, tornando-os menos competitivos em relação a outros candidatos ou resultando na eliminação de postos de trabalho. Em vez de proteger os trabalhadores, o salário mínimo perpetua o ciclo de pobreza ao criar barreiras adicionais para a entrada no mercado de trabalho.
Em meus cursos, já me deparei com todos os tipos de alunos: dos interessados aos perdidos, dos atentos aos dispersos, dos participativos aos desdenhosos. Porém, há um tipo especial, aquele que é possuidor de um douto desconhecimento.
O possuidor de um douto desconhecimento possui algum conhecimento, mas sempre limitado e defeituoso. Porém, quando se expressa, faz isso com ar professoral. Geralmente, o que sabe é baseado em frases feitas e em lugares-comuns que pouco ou nada acrescentam à matéria, mas quando sai de sua boca parece tratar-se da última grande descoberta da humanidade.
Por causa do seu imaginário limitado, o possuidor de um douto desconhecimento não percebe o quanto lhe falta de conhecimento. Por consequência, acredita que o que sabe esgota a matéria. Por isso, se acha muito inteligente. Assim, não tendo consciência do que lhe falta, sente-se na obrigação de se expressar como uma autoridade no assunto.
Se o possuidor de um douto desconhecimento pensa que o que sabe alcança tudo, é evidente que acredita que o que diz tem importância vital. Por isso, quando fala exige ser ouvido, disparando seu arsenal de informações como se fossem a última verdade das matérias tratadas. Quando pede um aparte, dificilmente faz uma pergunta, mas quase sempre um comentário, que tem por objetivo expor o seu ponto de vista, que ele considera de suma importância para todos que o escutam.
Obviamente, um possuidor de um douto desconhecimento terá sérias dificuldades de absorver qualquer coisa que lhe seja ensinada. Afinal, quem terá o que ele ainda não possui? Mesmo o professor não passará de mais um ouvinte de suas intervenções sapienciais. Seu pedantismo lhe faz desperdiçar oportunidades de conhecimento e lhe enclausura na própria ignorância. Isso porque quem não se dispõe a aprender com os outros está condenado a viver, perpetuamente, em seu mundo pequeno e hermético.
Falta, na verdade, para o possuidor de um douto desconhecimento o espírito do espectador de uma peça teatral, que assiste uma encenação sem discutir com os personagens, nem criticar o roteiro, mas se deixa usufruir do enredo, sentindo a emoção da narrativa, desvendando o sentido de história, entendendo a proposta do autor.
Da mesma maneira, quando lemos um livro ou assistimos uma aula devemos também permitir-nos ser guiados. O pensamento crítico deve ser suspenso; as objeções, guardadas. Há o tempo certo para eles, mas não antes de nos esforçarmos por entender o ponto de vista de quem ensina — o que só é possível aceitando pensar como ele, sob as categorias dele.
Uma amiga me perguntou, certa vez, como ela deveria ler um livro. Eu expliquei que ela deveria tomar o autor como se fosse seu professor, independentemente de quem ele fosse. Então, ela, assustada, me perguntou: mas se eu não concordar com ele? O que eu retruquei, de pronto: e como você pode discordar de alguém que desconhece? Como criticar quem você sequer deu a oportunidade de se expressar?
Por isso, meu conselho para os estudantes é que se deixem conduzir e não assumam uma posição crítica muito cedo; que ouçam, reflitam e permitam que as ideias que lhes forem apresentadas sejam absorvidas sem muitos filtros, sem muitos preconceitos, sem muitas ressalvas. Aprendam a ser alunos e não permitam que o entendimento das coisas seja impedido por sua petulância, pelo seu douto desconhecimento.
Chegaram quando a festa já ia começando, enquanto os convidados aguardavam os noivos, que não tardaram a chegar da sinagoga. O local era um belo jardim, onde havia música e dança, e três grandes mesas dispostas enfileiradas, repletas de frutas, cordeiro, pão, mel e vinho. Após cumprimentar os presentes, Ele abençoou os jovens noivos, e então todos viram irradiar do casal um leve brilho.
Sentou-se com a mãe e os Seus na mesa do meio, e entre jogos, brincadeiras e conversas animadas, passou a ensinar. Os que O circundavam, e mesmo os que se sentavam nas mesas dos lados, escutavam-No com atenção, procurando sorver e assimilar cada uma de Suas palavras. E assim seguiam os festejos, com boa música, dança, boa comida e a melhor das companhias.
No auge da festa, no entanto, acabou o vinho. Ele ainda ensinava, e para além daqueles olhos fixos e atentos n’Ele, podiam-se ouvir alguns cochichos e murmúrios. Maria então O interrompeu, e, fitando-O com um olhar humilde, súplice, informou:
– Filho, não há mais vinho.
Ele se comoveu com aquele olhar em que transbordava a generosidade e a pureza do coração de Sua mãe, mas respondeu-lhe ainda como Pedagogo:
– Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora.
Ela curvou-se humildemente, mas logo em seguida dirigiu-se a dois dos serventes que estavam ao seu lado e lhes instruiu:
– Fazei tudo o que Ele vos disser.
Ele pediu aos dois rapazes que enchessem de água seis grande talhas vazias que se encontravam ali perto, e assim eles obedeceram, enchendo-as até o topo. Ele então lhes disse:
– Tirai agora e levai ao mestre despenseiro.
Os dois novamente obedeceram, e quando o despenseiro tomou aquela água que, sem que ele soubesse, havia sido transformada no melhor vinho que já provara, muito maravilhou-se. Chamou à parte o jovem, que àquela hora dançava alegre, ainda ignorando a falta da bebida:
– Senhor, todo homem põe primeiro o bom vinho, e, quando já os convidados têm bebido bem, então lhes apresenta o inferior; tu, ao contrário, tiveste o melhor vinho guardado até agora!
Uma irritante e insistente melodia resgatou Horácio de um sonho confuso. Desnorteado no quarto obscuro, serviu-lhe de farol a luz do celular, de onde esganiçava a canção. 6h da manhã, verificou. Teve ímpetos de apelar ao sistema de sonecas, mas já há semanas, há meses, ensaiava acordar mais cedo, para caminhar na praça, conforme urgente recomendação da medicina. Manteve-se desperto.
Mas, na verdade, mais do que o propósito cardiovascular, foi um número cinco, numa bolinha vermelha, acima do ícone do Twitter, que lhe deu ânimo e disposição. Cinco notificações? Na sua conta? Ora, ele nunca tinha alcançado semelhante resultado. Lembrou-se vagamente de ter compartilhado a fala de um político folclórico e julgou ter sido essa a bem sucedida publicação. Ansioso, foi conferir. Para sua decepção — diga-se, uma decepção resignada — eram mensagens da própria plataforma informando de uma nova funcionalidade.
Horácio aproveitou a visita para sapear os assuntos mais celebrados. Ele sempre dizia para si que aquele era o jornal do homem moderno, e que era seu dever, todas as manhãs, demorar-se ali alguns minutos, a fim de manter-se a par dos principais acontecimentos sociais, artísticos e políticos, do Brasil e do estrangeiro. Viu, dessa vez, que nada de muito relevante acontecera, aqui ou em qualquer outra parte. Em destaque: a fala do participante de um reality show que causou comoção e provocou espasmos éticos e humanos nos internautas; a goleada do Corinthians num time da terceira divisão do Mato Grosso; o caso dos vereadores de um pequeno município potiguar que teriam se estapeado, em plena sessão, devido a ofensas que um proferira contra a masculinidade do outro.
Mesmo assim, para manter-se informado, Horácio fez questão de vasculhar todos os tópicos, sondando opiniões, concordando com uns, discordando de outros, dando likes e shares, bolando ele mesmo, ainda que mentalmente, argumentos e explicações os mais variados para cada assunto que a rede mundial de computadores julgava relevante. Levantou-se às 8h25.
II.
Horácio banhou-se rápido e dejejuou mal. De novo atrasado. Funcionário público há duas décadas, acostumado com o trânsito paulista e a fina sociologia do tribunal, o homem ficou desgraçadamente confinado ao home office, desde o início da pandemia, e agora precisava bater o ponto no computador do seu escritório improvisado, no quarto de visitas do apartamento — atividade aparentemente banal que ele nunca conseguia realizar com excelência.
Entrou no sistema, se deparou com uma lista de tarefas acumuladas e decidiu-se a colocar o serviço em dia. Não era desses que viam a estabilidade do cargo como escora para fazer corpo mole. Sentou-se na sua cadeira, arrebatada da cozinha, sentiu algum desconforto lombar e lembrou-se que precisava de uma nova, mais confortável, de couro. Acessou a Amazon e notou que já havia colocado a peça no carrinho. A cadeira e mais uma centena de produtos: eletrônicos, bugigangas orientais, livros, conhaques e ceroulas. Cogitou fechar a compra, excluindo aquilo que já lhe parecia inútil, mas, pelo contrário, foi clicando em sugestões, pulando de departamento em departamento, dos alimentos aos calçados, e terminou acrescentando ao pejado carrinho mais uns vinte e cinco itens.
Foi aí que um certo ruído estomacal lhe informou que se aproximava o almoço. Tomou o celular e, como de hábito, deixou-se entreter com o cardápio variadíssimo do iFood. Fez uma odisséia gastronômica: foi à China, ao Peru, dali à Índia, depois às Arábias — onde se demorou enfeitiçado — e, qual Eneias, terminou na Itália. Pediu o conchiglione de uma cantina famosa e distante e pôs-se a aguardar — aproveitando o meio-tempo, já que desconcentrado pela fome, para assistir, na ESPN, aos gols da rodada dos campeonatos inglês, espanhol, argentino e alemão. Quando o prato enfim chegou, abocanhou distraidamente dois tecos da massa, largou o restante no micro-ondas, e foi-se ao trabalho.
III.
Digo, tentou, esforçou-se. Mas algo o inquietava diante daquelas petições, daqueles acórdãos. Não podia lê-los por dois minutos sem que lhe abatesse um enfado tremendo, um invencível desânimo. Era isso todos os dias, nos últimos meses. Estaria ele em crise vocacional? Bem que o coração lhe dizia que o seu tino era para música. Agora estava ali, quarentão, beirando os cinquenta, fazendo algo que no fundo detestava em troca de salário garantido e aposentaria gorda. Em contrapartida, nunca antes o serviço lhe pesara. Sempre foi bom funcionário e conquistou, por mérito, invejada posição no gabinete. Seria burnout? Muitos colegas haviam parado na psicóloga por causa da síndrome. Sim, burnout. O nome sugestivo e a memória dos amigos o levaram a admiti-lo como a hipótese mais plausível.
“Burnout”, escreveu ele no YouTube. Nos filtros, escolheu os vídeos curtos, já que, por força do dever, ainda precisava resolver as pendências do dia. Assistiu a um, viu trechos de vários, pegou o Instagram de um doutor que lhe pareceu mais competente e mudou de plataforma. Ali, vasculhou o perfil do médico, anotou mentalmente uma vintena de informações — para esquecê-las em seguida —, curtiu postagens, se identificou com a audiência e concluiu que, sem sombras de dúvidas, era burnout. No dia seguinte, pediria férias.
Eram 16h30.
IV.
Certo de que estava doente, Horácio sentiu-se remido e não mais se afligiu com o trabalho. A ideia de novas férias, e em época inédita, o excitou. Ele merecia, era para o seu bem. Mas, para onde? Orlando já não lhe apetecia; a França, dizia, não tinha o mesmo glamour; a Itália ele considerava um cemitério de igrejas tão belas quanto inúteis. Buscou inspiração em sites de companhias de viagens e após longa cogitação ficou entre a Indonésia e o Nepal — encorajando-se para o exótico. Voltou então ao YouTube para ver, conforme a opinião dos vlogs de mochileiros, qual dessas terras asiáticas lhe seria mais benfazeja.
V.
Às 20h, quando ele enfim se decidiu por Katmandu, seu filho mais novo veio contar, com grande entusiasmo, algo que lhe sucedera na escola. Como, porém, a narrativa fosse longa e complexa, o pai ouviu apenas opacamente e deu ao menino uma resposta protocolar: “É assim mesmo. Veja o que sua mãe diz”. Na verdade, tinha urgência em dispensar o pequeno pois era noite de futebol e, embora seu time não jogasse, ele precisava cumprir seu papel e secar todos os adversários. Como de costume, abriu vários streamings e deixou as partidas rolando simultaneamente. Ao mesmo tempo, tinha que comentar cada lance no grupo do society, no WhatsApp — grupo que só se reunia virtualmente —, e terminou, no fim das contas, não vendo jogo nenhum.
VI.
23h45 lhe apareceu a mulher. Vinha ela em trajes diáfanos, exalando perfume doce. Perguntou se o marido não estava cansado, se já não era tempo de largar a máquina. O homem olhou-a de esguelho, disse estar bem, e prometeu deitar-se dali a pouco, pois ainda carecia entregar um relatório. A mulher enervou-se e teve ímpetos de dizer alguma coisa que, sabia ela, desencadearia uma discussão longa e infrutífera. Cansada, foi deitar-se sozinha, com a mágoa lhe espicaçando o peito.
Horácio entreviu o mal-estar no rosto da esposa e cogitou ir falar-lhe. Mas concluiu que ele é quem deveria se chatear, pois era um homem doente, que trabalhava o dia inteiro para levar conforto àquela família e a família lhe fazia pouco caso. Ia pensando tudo isso enquanto deslizava a tela do Instagram. De repente, apareceu-lhe uma loira bonita em biquíni pouco cristão. A imagem sugou-lhe a atenção e refreou sua lamúria. Clicou e viu que no perfil da jovem havia muitas e muitas fotos semelhantes.
Como se demorasse ali, a plataforma, amigavelmente, passou a lhe sugerir moças do mesmo viés. Viu uma, e outra, e outra. Dali um tanto, os biquínis e a falta de criatividade nas poses começaram a lhe parecer inconvenientes. Então, como de hábito, trancou a porta do escritório, apagou as luzes e tratou de visitar sites cujo conteúdo, digamos, mais franco, lhe dava maior alegria. Vasculhou página por página, sessão por sessão. Abriu outro site congênere e realizou ali, diligentemente, a mesma ritualística. De si para si, criticou a decadência da indústria, asseverando que as peças já não lhe davam o mesmo prazer. Teve nostalgia, mas mesmo assim insistiu. Resolveu, pois, entrar em outros canais, de sessões mais proibitivas, até criminosas, e a novidade o manteve aceso e interessado. Deve ter clicado — inconscientemente, é preciso dizer —, em duas centenas de filmetes.
Então lhe bateu um cansaço e ele consumou a atividade — pois, segundo a sua filosofia, endossada por alguma sexóloga da TV, só assim podia dormir bem e acordar disposto. Ato contínuo, logo após o pico de euforia, sentiu-se profundamente apático. Não digo arrependido, pois não lhe angustiavam as contraindicações morais. Sentiu-se mesmo triste, vácuo, enfraquecido, dominado por força que ele desconhecia, mas desgostava. Teve ânsia de chorar. Tanto mais quando se deu conta do horário: 4h15.
VII.
Um pouco frustrado pelo dia que passou tão breve — colocou a culpa na época, “hoje em dia o tempo voa” —, foi à cozinha e comeu em rápidas colheradas o conchiglione gelado, que desceu goela abaixo empurrado por meio litro de Coca-Cola e um trago de conhaque. Com olhos irritados e ombros caídos, Horácio arrastou-se ao banheiro, lavou-se rapidamente e foi à cama. Deu uma última passada pelo Twitter, a ver que novos males teriam abalado o mundo, e viu que o mundo seguia exatamente o mesmo. Enfim, decidiu-se por um novo rumo, por uma nova vida, e, mesmo já alta madrugada, colocou o celular para despertar às 7h, para o exercício. Fechou os olhos com a mente um pouco atordoada, dormiu rápido, e nunca mais acordou.
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O cão, o lobo e o rato
(Publicado originalmente no Diário do Comércio, em 8 de Maio de 2015, disponível no site do professor)
Giambattista Vico ensinava que nada conhecemos tão bem quanto aquilo que nós mesmos inventamos. O sr. Marco Antonio Villa ilustra essa regra com perfeição.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário do Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de “puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um “astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna, ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’ preconizado por Marx.. foi transmutado numa operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel, milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica” entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr. Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar. Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT. Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo “bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta. Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás, mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação” por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário do Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de “puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um “astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna, ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’ preconizado por Marx.. foi transmutado numa operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel, milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica” entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr. Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar. Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT. Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo “bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta. Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás, mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação” por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.
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