Edição I (Revista Terça Livre 90, opinião e mais)

Resumo semanal de conteúdo com artigos selecionados, de foco na área cultural (mas não necessariamente apenas), publicados na Revista Terça Livre, da qual sou assinante, com autorização pública dos próprios autores da revista digital. Nenhum texto aqui pertence a mim, todos são de autoria dos citados abaixo. Assinem o conteúdo da revista pelo link e vejam muito mais conteúdo.





CULTURAL

Semana das Semanas
(por Robson Oliveira)

É a Semana das Semanas. Os sete dias mais importantes de toda a história universal. Por causa do pecado dos primeiros pais e para que a Justiça ganhasse a Terra, a Misericórdia toma as rédeas do Mundo. De modo inaudito, o Inocente será macerado por verdugos. Uma Luz vai brilhar, quando as trevas lançarem suas garras sobre a criação. Um Redentor, quando as forças infernais se arremessarem sobre as almas e os corpos de homens e mulheres. A sombra da morte, porém, sofrerá um golpe fatal do Senhor da Vida.

Enquanto alguns viajam para aproveitar miniférias, esquecendo-se voluntariamente do sentido profundo desses dias, os cristãos – mesmo em trânsito – relembram que esta semana mudou o rumo da história. De fato, após a crucifixão do Senhor, a justiça ganhou um rosto. E isto é estupendo! Pois a vida comum foi renovada por dentro e resta encarnada em sinais simples e ordinários... Depois da Quinta-feira Santa, a esperança veio até nós e escondeu-se num pedacinho de Pão; após aquela Sexta-Feira, a fé ganhou um conteúdo preciso e permanece oculto na interseção entre dois madeiros; o amor, enfim, tomou a carne humana e tocou até o fundo de tudo o que o homem é. Ao fim desta Semana, ao fim deste Drama Divino, torna-se evidente o verdadeiro inimigo do homem, aquele inimigo que necessita ser combatido todos os dias: o pecado.

Com efeito, durante a Semana das Semanas, o Senhor ensinará ao mundo que toda a história se reduz à tragédia de um amor traído: nações em guerra, morte de inocentes, corrompidos e corruptores, injustiça e iniquidade equilibram-se entre o beijo venal de um amigo traidor e as lágrimas purificantes de um traidor arrependido. As maiores batalhas jamais combatidas são tratadas no interior da alma humana, na fidelidade ou na infidelidade ao amor entre os amigos, ou no respeito máximo entre os membros de sua casa. Não são estruturas injustas de poder, nem personagens maquiavélicos e larápios monumentais os reais causadores do mal do mundo. Nem famílias poderosas ou ONG’s sem rosto os verdadeiros vilões da história humana. Estes são apenas a ponta do iceberg, o sintoma mais visível e incômodo de uma doença ainda mais vergonhosa, cruel e perigosa: o amor a si até o desprezo do outro e de Deus.

Afinal, sofrer injustiças, ser objeto de injúrias, passar penúria física ou moral sem culpa, tudo isso não é capaz de pôr em risco a alma humana, nem sua felicidade. O verdadeiro mal, o único mal verdadeiro, reside no coração humano. O verdadeiro perigo nasce do coração, brota do interior da alma do homem, quando faz com que o homem se afaste do amor de Deus e do amor de seus irmãos. Pois este é um segredo ainda infelizmente muito bem escondido: é impossível amar a Deus, a quem não se vê, ato contínuo em que se expropria, assassina, rouba, macera, violenta, desonra o irmão a quem se vê.

Nesta semana, aprende-se a lição mais importante de todas: o amor precisa ser defendido. Não se pode consentir minimamente com a traição ao amor. De outro modo, isto significa que ao pecado não se dá trégua. Com o pecado não se faz paz. Nessa Semana Santa importa recordar que o único inimigo verdadeiro do homem é o pecado, que é o amor a tudo o que afasta a humanidade de Deus. Tudo o mais pode ser revertido, mas o desejo pessoal e consciente de amar o mal não pode conviver com a bondade de Deus e é o verdadeiro algoz do ser humano.

Aproveitemos esses dias para nos retirarmos. Recordemos o preço pago para a remissão da vida humana: da minha e da sua. Lembremos dos verdugos, das pancadas, da vergonha e do escárnio. Recordemos que todas essas penas eram endereçadas a você e a mim. E alegremo-nos se, por um misterioso desígnio divino, algumas destas ofensas escapam do Corpo Santo de Jesus e tocam-nos hoje. Como se o Senhor nos permitisse, hoje, compartilhar um pouco do que Ele sofreu por nós há 20 séculos.

Diante disso, meditemos sobre nossas escolhas cotidianas. Meditemos e envergonhemo-nos por amarmos tão pouco Aquele que não guardou nada para si mesmo a fim de dar-se todo a nós.

Boa Semana Santa!

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Igreja Católica, sociedade fundada por Deus
(por Carlos Dias)

A Igreja Católica, nesses tempos de pandemia, tem sofrido forte tentativa de tutela por parte do Estado brasileiro. Ações arbitrárias e violentas de restrição, interrupção de suas atividades, inclusive, durante o culto sagrado a Deus, que é protegido pela própria Constituição Federal.

A Igreja Católica é instituição independente e não subordinada ao poder do Estado. Nem, tampouco, pode ser regida por estatutos produzidos pelo Estado ou por ditames desse mesmo poder, que interfiram na sua capacidade de autogovernar-se e promover a sua missão de forma ampla em relação à própria instituição e à vida espiritual de seus fiéis.

A Igreja Católica tem um ordenamento jurídico próprio, que não advém do direito do Estado brasileiro ou de qualquer outro. Esse ordenamento se enquadra nas condições especiais de sua natureza e mantém a necessária independência em relação ao poder temporal.

A Igreja Católica, e isso precisa ser reafirmado nesse tempo de tanta invasão de competência e abuso de poder e de direito, é uma sociedade fundada diretamente por Deus, através de Nosso Senhor Jesus Cristo, e por essa condição única e inviolável, os seus estatutos jurídicos são de origem própria e possuem prerrogativas de independência essenciais advindas de sua natureza.

A Igreja Católica tem capacidade de autogovernar-se e de exercer autoridade única sobre os membros de seu corpo e realizar suas atividades, através dos mesmos, para a consecução de seus objetivos pastorais, que são de ordem sobrenatural, e, também, mesmo aqueles que podem ser confundidos com competências de ações do mundo secular.

A Igreja Católica possui soberania jurisdicional limitada à sua própria ordem, significando dizer que sua jurisdição está vinculada a matérias que têm relação com o seu próprio fim. Portanto, a Igreja Católica não pode sofrer interferência na condução de sua organização interna, como também, da mesma forma, no que se refere à utilização de seus templos, vinculadas exclusivamente às atividades próprias de sua existência e missão, ser tutelada pela ordem jurídica do Estado.

Nesse tempo de pandemia, o que seria aceitável e de bom tom, seria um diálogo preservando e respeitando a independência da Igreja Católica, perita em humanidade, que saberá agir na melhor forma e definição de bem comum.

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Desobediência pascal
(por Leônidas Pellegrini)

I
Quando o jovem padre Max soube que pelo segundo ano consecutivo as igrejas seriam fechadas por um decreto estadual na ocasião da Páscoa, com o pretexto de se conter a disseminação da tal praga chinesa, revoltou-se. Mesmo sabendo que seria perda de tempo, mesmo sabendo qual seria o posicionamento da Diocese, foi conversar com o bispo, que já o esperava com o discurso pronto: são tempos difíceis, precisamos pensar na saúde dos fiéis, vidas em primeiro lugar etc. etc. etc.

Saiu da sala do superior sem se despedir, ainda mais furioso. Foi à capela do Santíssimo orar e depois se confessou com o padre Sidnei. O colega sacerdote, que adorava presidir missas com muita música, cantoria, coreografias e micagens, também se lamentava:

- Pois é, meu amigo, depois de quase um ano com essas missas chochas, com pouca gente, todo mundo separado, espalhado, sem música ao vivo, só com aquelas gravações que dão um desânimo, agora eles fecham a igreja de novo. E que saudade dos teatrinhos com as crianças! Eu adorava dirigir o da Páscoa...

- Mas então – padre Max olhava inquieto o colega – a gente vai deixar por isso mesmo, não vai fazer nada? A gente abre a igreja, toca o sino, chama os fiéis, sei lá! A polícia não vai vir aqui pra prender padre!

- Você acabou de se confessar, meu amigo. – Padre Sidnei o olhava com tristeza – “Embainha a tua espada”. O bispo decidiu, tá decidido, o que é que a gente pode fazer? Eu vou te dizer, você fala muita coisa que eu não entendo, e juro mesmo que queria entender, mas, sei lá, esse vírus aí ainda me dá medo, não sei se o bispo tá errado ou não. Além disso, não depende só da gente, né? Você viu gente vindo aqui exigir igreja aberta?

Enquanto padre Max saía de cabeça baixa e resmungando entre dentes, padre Sidnei ficou ali pensando. Precisava rezar mais por aquele jovem colega de batina que rezava o Terço em latim, queria ensinar latim e canto gregoriano aos fiéis, sonhava em implantar missa tridentina na Catedral e lia e falava de tantas coisas que o deixavam tonto: geopolítica, filosofia, ciência, filosofia da ciência – ele que nem sabia que existia uma filosofia da ciência! O rapaz era bom, inteligente, bem-intencionado, mas muito estourado, e tinha aquelas conversas que ele não entendia, mas de que gostava. Inevitavelmente, então, pensou no bispo. Ele falava coisas que ele até entendia, mas de que não gostava. Detestava ter que acompanhar suas homilias de sábado à noite, principalmente quando ele insistia em falar sobre o caráter meramente simbólico das narrativas bíblicas. Aquilo o deixava mais incomodado que quando o bispo expunha suas ideias políticas...

Teve seus pensamentos interrompidos por um fiel que chegava para se confessar. Aliás, foi uma tarde de muitas confissões naquele último dia com a Catedral aberta. Entre adultérios, gula, inveja, fofoca, preguiça e gente desesperada procurando consolo, padre Sidnei pôde ver em vários fiéis a mesma ira do seu jovem colega, a mesma revolta, e aconselhava como podia, pedindo serenidade, recomendando oração. No final do dia, cansado, fez o que fazia todos os finais de tarde: passeou pelo jardim que ficava atrás do salão paroquial, sentindo o cheiro doce das mangueiras enquanto rezava o Terço e pedia a Nossa Senhora pelo país, pela Igreja, pelos fiéis, pelo jovem colega e pelo bispo.

II
Nos dias que se seguiram, na semana anterior à Semana Santa, padre Sidnei, em obediência às ordens do bispo, permaneceu em casa cuidando de sua horta, orando e assistindo televisão. Padre Max visitava os fiéis, escutava confissões, levava a comunhão, administrava a unção dos enfermos e, seguindo o exemplo de seu amigo, o pastor Oséias, que animava os grupos de oração a portas fechadas nos fundos da Igreja da Graça Eterna, rezava o Santo Terço com grupos de fiéis nos quintais de suas casas. O bispo soube e se enfureceu com a petulância do padreco insuportável que tanto desprezava, mas resolveu fazer vistas grossas. A vitória já era sua, com as duas igrejas católicas da cidade trancadas e interditadas, e ele sempre poderia pensar em alguma vingança ou humilhação futura contra o jovenzinho negacionista. Era questão de tempo.

E o tempo fechou. Na noite de segunda para terça-feira da Semana Santa, enquanto padre Max presidia o Terço na casa de um dos fiéis com o grupo de oração da rua, uma tempestade desabou sobre a cidade, um aguaceiro como não se via tinha muito tempo, com raios e mais raios, árvores desabadas e queda de energia na maior parte dos bairros. Uma noite assustadora e bonita, conforme padre Sidnei pensava olhando da janela de seu quarto.

De manhã o sol já subia ardido, com céu azul e a cidade toda fechada, sem poder funcionar. Pelas ruas só se viam alguns poucos trabalhadores essenciais, a maior parte deles arrumando postes e fios, removendo galhos e árvores. Lá pelas três da tarde, no entanto, um grupo de seis pessoas levando cartazes com dizeres “O PÃO DA VIDA É ESSENCIAL”, “NÃO NEGUEM CRISTO AO POVO” e “ABRAM CASA DE DEUS, ABRAM A NOSSA CASA”, se postou na porta da Catedral e de lá não saiu.

O bispo ficou furioso e ligou denunciando, mas a PM resolveu ignorar. A prefeita também não ficou feliz quando soube, mas achou melhor ignorar e silenciar a respeito, ligou para as duas rádios locais e para o portal de notícias da cidade proibindo de noticiarem.

Padre Max havia acordado com sintomas de resfriado. Havia tomado chuva voltando para casa na noite anterior. Ficou em casa aquele dia, sob os cuidados do Zé da Farmácia e do kit de remédios proibido para o tratamento conta a peste chinesa, que o farmacêutico levava escondido para seus pacientes. Ficou eufórico quando recebeu as mensagens do pastor Oséias, que havia fotografado e postado em todas as redes e no grupo da igreja as fotos do que o amigo chamava de Os Seis da Catedral: “Salve, irmão! Olha aí as tuas ovelhas! Glória a Deus! Amanhã vou aí na tua casa, precisamos conversar!”

O Jovem padre ficou ansioso, mas concordou em obedecer, ainda que contrariado, às recomendações do Zé da Farmácia, devendo repousar em casa pelo menos até o Sábado de Aleluia:

- Cautela e canja de galinha nunca fizeram mal – o farmacêutico ria. – Descansa, porque o povo precisa do senhor! Sua bênção...

III
Na quarta-feira pastor Oséias chegou cedo, sorridente. Mostrava as fotos do povo na porta da Catedral. De um dia para o outro, os seis viraram quarenta. As ordens para ignorá-los continuavam, mas as fotos e os vídeos bombavam na internet, rodavam Brasil e mundo. Padre Max já havia visto e curtido cada uma das publicações antes mesmo da visita do amigo. Estava se sentindo melhor e animado. Antes de ir embora, o pastor falou sério, olhando nos olhos:

- Tuas ovelhas lá na Catedral me trouxeram a inspiração que eu precisava, meu amigo. No domingo de Páscoa a gente vai abrir e vai ter culto. Aliás, não só a gente. Outras igrejas também.

Antes de sair, puxou o dito que tinha costume de fazer para o amigo padre completar:

- Deus é bom o tempo todo...

- ... e o tempo todo Deus é bom!

Os olhos do jovem sacerdote brilhavam. Antes que pudesse pensar no que fazer, seu celular começou a apitar. Eram diversas mensagens dos fiéis desejando melhoras e tantas outras querendo saber sobre a tal missa do domingo de Páscoa. Ele não sabia o que responder, e, no estado em que estava, ainda resfriado apesar de já se sentir melhor, também não podia fazer nada. Pediu paciência às pessoas, desligou o celular e tentou descansar o restante do dia.

No final da tarde ligou o celular de novo. Além de centenas de mensagens de seus filhos espirituais, viu que o número de pessoas na frente da Catedral tinha subido: os seis que tinham virado quarenta, agora eram duzentos. Escreveu para o padre Sidnei, que demorou a responder. Já era noite alta quando recebeu a resposta: “Boa noite, meu amigo. Não sei o que você está tramando, mas toma cuidado. Amanhã à noite eu vou aí. Se cuida. E desliga esse celular.”

Ele atendeu a recomendação do amigo e, na quinta, planejava um dia de oração e meditação, mas no meio da tarde recebeu a visita de um grupo de fiéis que vinha trazer, junto com bolos, tortas, frutas, bolinhos de chuva e até macarronada, notícias da Catedral. O número de pessoas estava ainda maior, coisa bonita de ver, segundo Dona Zélia:

- A gente tá planejando ir rezando o Terço até na frente cada casa do bispo e na da prefeita, padre! E levar o protesto pra lá!

Mas padre Max desaconselhou, era hora de ter calma:

- Continuem orando. Joelho no chão e Terço na mão! Amanhã é dia de jejum e oração. A gente se fala no sábado. Mas não se preocupem, porque domingo vai ter missa!

Dali a pouco uma nova chuva caiu na cidade e dispersou os manifestantes. Parou logo, mas ninguém voltou. Já haviam feito sua parte, a cidade era uma das tantas que circulavam pela internet com protestos pela abertura das igrejas, e todos já se preparavam para a Sexta-Feira Santa.

De noitinha apareceu o padre Sidnei:

- Está melhor?

- Cem por cento! – Padre Max estava animado. – Mas não se preocupe, não vou sair da minha “quarentena”, hehe! Então, você já tá sabendo que...

- Tá todo mundo sabendo, Max. Inclusive o bispo. Ele interditou a Catedral e a Nossa Senhora das Graças. Trancou tudo com cadeado e corrente, e só ele tem as chaves. Sinto muito...

Padre Max ficou silicioso uns minutos. Depois falou calmo:

- Tudo bem. Isso não me impede de fazer uma celebração da palavra, nem que seja na praça e...

- Olha, meu amigo, você vai se encrencar...

- Vou pagar pra ver. – O jovem padre continuava a falar com calma, sem o nervosismo habitual; a tarde de oração e meditação tinha feito bem. – Mas não se preocupe. Estou preparado. Mas e você?

- Eu o quê?

- No domingo eu vou estar na praça da Catedral. Muita gente também. E você?

- Não conte comigo – Padre Sidnei suspirou. – Não vou participar disso. Não mais do que já participei...

Padre Max franziu a testa. Ia perguntar, mas o amigo o chamou pra fora. Seguiram em silêncio até o carro na frente da casa. Padre Sidnei abriu a porta traseira o indicou um baú no banco:

- Pega e leva pra dentro. Com cuidado. Abre depois que eu for embora.

Esperou o jovem padre pegar o baú. Fechou a porta e se despediu:

- Fica com Deus, meu amigo. Que Ele te abençoe.

Padre Max ficou olhando o carro se afastar até sumir. O baú não estava muito leve. Levou para dentro. Antes de abrir, viu que tinha um bilhete colado com durex na tampa:

“Passei na Nossa Senhora das Graças antes do bispo. Você vai ter que devolver lá depois. Já está tudo consagrado. Boa sorte.”

Abriu o baú e viu cuidadosamente acondicionados, junto com uma garrafa com vinho eucarístico e uma caixa grande cheia de hóstias, objetos litúrgicos para a missa pascal.

IV
No domingo cedinho, antes do sol, os primeiros fiéis iam chegando alegres mas silenciosos na praça da Catedral. Caminhonetes descarregavam uma escrivaninha, uma sapateira e diversas cadeiras de plástico e de lata. Improvisaram a escrivaninha como altar, na mesma direção do altar da igreja. A sapateira deixaram em local próximo ao altar improvisado, e de lá foram tirando os objetos litúrgicos necessários para o início da missa. Cobriram a escrivaninha com toalha branca, colocaram o Crucificado em uma haste improvisada logo atrás do altar. Chegaram mais fiéis trazendo velas e longos candelabros para improvisarem como círios, outros com vasos de margaridas brancas, uma imagem de Nosso Senhor Glorioso e uma de Nossa Senhora Aparecida que colocaram em outras duas mesas de lata cobertas com pano branco e colocadas uma em cada lado do altar. Foram distribuindo as cadeiras como podiam pela praça, tentando criar uma configuração mais parecida possível com a da assembleia da igreja.

Dali a pouco chegou Padre Max, e foi ajudando os ministros na organização dos trabalhos. Encostou uma viatura e o sargento ao volante buzinou fazendo sinal para o padre. Ele pediu que todos ficassem calmos e foi sozinho conservar com os PMs. Os dois da viatura desejaram feliz Páscoa e esclareceram que tinham ordens diretas do comandante de não atrapalhar, mas que precisavam que ficar por ali. Meio encabulado, o sargento pediu se não podiam ser confessados antes da missa. Padre Max sorriu e os levou até uma árvore mais afastada das pessoas. Confessou um e depois o outro, e os dois foram se sentar em um banco da praça mais ou menos perto da assembleia.

Às sete e pouco, enquanto Dona Zélia puxava o Rosário e Padre Max confessava os fiéis que iam fazendo fila próximos à arvore-confessionário, chegaram mais algumas figuras inesperadas: o comandante da PM, à paisana e com a família, em sua folga de Páscoa, dirigindo-se ao fim da fila do confessionário improvisado, e Padre Sidnei, que trazia consigo Zeca Violeiro, o músico cego da cidade que pelo decreto estadual havia sido proibido de ficar ali na praça. Os dois sacerdotes se abraçaram, desejaram feliz Páscoa, e Padre Sidnei pediu:

- Olha, Max, o Zeca sabe e cor tudo quanto é música da igreja, será que ele não podia...

- É claro, é claro – os olhos de Padre Max brilhavam -, leva ele lá pro lado do altar, ele vai cantar e tocar, e o pessoal acompanha!

- Leva você, meu amigo. E depois vai para um lugar quieto. Você precisa se preparar pra missa daqui a pouco. Mas antes – deu uma piscada pro amigo – acho que nós dois precisamos de uma última confissão, né?

Riram. Depois se confessaram um ao outro, e padre Sidnei assumiu um lugar do colega, que seguiu com Zeca Violeiro rumo a uma cadeira próxima ao altar.

Faltando quinze minutos para a missa, com a praça já tão cheia que as pessoas traziam de casa suas próprias cadeiras e banquinhos, ou iam se comandando como podiam, sentando onde encontrassem lugar ou ficando de pé mesmo, chegaram a prefeita e o bispo. Ele, furioso, e ela, atônita. Não estava preparada para aquilo. As redes sociais estavam cheia de fotos e mais fotos, vídeos e mais vídeos, não apenas dos católicos na praça, mas de fiéis em todas as igrejas evangélicas da cidade. Em um dos vídeos, pastor Oséias aparecia agradecendo a inspiração que lhe haviam dado os Seis da Catedral: “Irmãozinhos católicos, que Deus os abençoe! Sorte pra vocês aí na praça! Glória a Deus, e em nome d’Ele, uma feliz Páscoa a todos!” No final do vídeo, ele puxava e a assembleia da Igreja da Graça Eterna respondia: “Deus é bom o tempo todo... E o tempo todo Deus é bom!”

Desconcertada, a prefeita ainda recebeu fotos de seus pais antes do culto na Presbiteriana, sua igreja, convidando-a para se juntar a eles. Pensou nas consequências de tudo aquilo para seu mandato, o capital político que seu apoio aos fiéis, com fotos suas no culto, poderia significar naquele momento, além da vontade genuína de ir ao culto de Páscoa. Mas também ponderou sobre represália que poderia sofrer do partido. Sem saber o que fazer, escreveu pro número de emergência do governador, que estava passando o feriado em Miami com a família A resposta foi rápida, curta e grossa: “Já estou sabendo de tudo. Sai daí AGORA! Não se envolva em NADA disso, e em NENHUMA IGREJA. Amanhã sai novo decreto, mais brando. Mas agora vá pra casa e FIQUE LÁ. É uma ORDEM.”

Ela baixou a cabeça e segurou as lágrimas. Queria muito ir ao culto com os pais, mas obedeceu às ordens do chefe. Saiu sem se despedir do bispo, que espumava de ódio olhando toda aquela cena, todo aquele povo aglomerado para celebrar uma ressurreição em que ele não acreditava e não aceitava que outros acreditassem. Virou-se e foi embora pisando duro quando escutou os sinos tocados pelos coroinhas e Zeca da Viola dedilhando os primeiros acordes do canto de entrada. Do outro lado da praça, Padre Max em suas vestes brancas e douradas era precedido pela procissão pascal. Eram oito horas e a missa ia começar.



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OPINIÃO DO AUTOR

Filosofia e a moral Cristã
(por Ricardo Pagliaro Thomaz)
10 de Fevereiro de 2021

A filosofia por si mesma não representa muita coisa. Ela só passa a significar algo quando encontra eco nas bases da realidade. Platão e Aristóteles, por exemplo, não tiveram glórias em suas épocas. Só foram reconhecidos como grandes pensadores séculos depois que suas obras se completaram. Em segundo lugar, a filosofia precisa de sentido moral. Eis que Santo Agostinho, no séc. IV e Santo Tomás de Aquino, no séc. XII, vieram a catequizar, batizar, respectivamente, esses dois pensadores gregos através da patrística e da escolástica. Dessa maneira, a filosofia grega pôde encontrar sentido, embasada na realidade e assim, achar um eco no tempo, tornando-se estudada e difundida até os dias de hoje. Eis que a filosofia grega se torna um dos grandes pilares do pensamento Ocidental.

Duns Scotus, no séc. XI, diria que o conceito de VERDADE é "a conformação do intelecto ao fato". Este é o conceito cru, por ele mesmo, e não quer dizer muita coisa, ao mesmo tempo que é uma boa definição considerando a lógica do pensamento. Mas Duns Scotus sabia disso, diferente de Platão e Aristóteles, que nasceram antes que Cristo viesse ao mundo.

Assim, Duns se escora na realidade invisível e eterna, nas palavras de Cristo, no Evangelho de João 14:6, onde podemos ler claramente: "Eu sou o caminho, a VERDADE e a vida".

Portanto, uma vez que a filosofia é o exercício da procura incessante da verdade, não é possível concebê-la fora do âmbito da espiritualidade. "Ah, mas Platão e Aristóteles eram da era do Politeísmo". Verdade! E isso não mostra que eles, mesmo que erroneamente, se escoravam no invisível? É óbvio que sim. Aristóteles foi o que chegou mais perto de matar a charada, que havia apenas um Deus, apenas um ser necessário e eterno.

Provavelmente foi por essa razão que Aristóteles, no fim de sua vida, enviou uma carta a um de seus melhores discípulos, Alexandre Magno, dizendo-lhe que seu trabalho durante a vida era inútil. Ele não poderia saber que, no séc. XII, haveria um frade católico, São Tomás, que pegaria sua obra e encontraria sentido nela, o sentido que Aristóteles, erroneamente, e talvez por uma crise de identidade, pensou que havia perdido ao descobrir a realidade das coisas.

Por isso que eu sempre digo às pessoas: NÃO TENHAM MEDO DA REALIDADE! Jamais na vida! É isso.


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HUMOR

(29/03/2021)

(26/03/2021)

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